Úlceras do pé diabético

O diabetes mellitus (DM), uma das doenças mais comuns em todo o mundo, tem prevalência estimada em meio bilhão de pessoas. Entre eles, um a cada três desenvolve, ao longo da vida, úlceras do pé diabético (UPD).  

O desenvolvimento das UPD é um marcador independente de mortalidade, que atinge 30% em 5 anos, alcançando 70% na sequência de amputação maior. O impacto na qualidade de vida é tremendo, gerando limitações físicas e desdobramentos psicológicos decorrentes das perdas teciduais e amputações, além de onerar sobremaneira a seguridade social e os sistemas de saúde.  

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pé diabético

Fisiopatologia e semiologia   

As úlceras do pé diabético se instalam a partir da evolução da neuropatia diabética em suas facetas sensitiva, motora e autonômica, em sobreposição com a doença arterial periférica (DAP), presente em até metade dos casos.   

A perda da sensibilidade protetora; somada à atrofia da musculatura, deformidades pediosas e anormalidades biomecânicas; bem como a disfunção autonômica, com modificação das propriedades viscoelásticas da pele; propiciam, em conjunto, a formação de calos plantares.   

Os calos, submetidos constantemente a pequenos traumas, passam a abrigar hemorragias, que posteriormente evoluem para úlceras de espessura total.  

O exame físico deve se iniciar pela ectoscopia, buscando-se calos plantares, maceração interdigital, onicodistrofia, dedos em martelo ou em garra, pés equinos e artropatia de Charcot, além das ulcerações, mais frequentes no dorso das interfalangeanas, cabeça dos metatarsos e pontas dos dedos.    

Na avaliação da sensibilidade protetora, recomenda-se o uso do monofilamento de Semmes-Weinstein 5,07 com avaliação em 3 pontos de pressão, substituível pelo teste do toque de Ipswich em 6 pontos; bem como a avaliação da sensibilidade vibratória por meio do diapasão de 128 Hz.  

Na avaliação de isquemia, lançamos mão dos seguintes elementos: palpação dos pulsos tibiais anterior e posterior, que quando presentes são preditores de cicatrização da ferida (RR 2,26); o índice tornozelo-braço (ITB), que, apesar de ser amplamente utilizado, tem utilidade limitada em diabéticos e renais crônicos, pelo fato de a calcinose medial superestimar a pressão sistólica nos membros inferiores; e o índice hálux-braquial, com aferição da pressão arterial em artérias interdigitais, com valores alterados se < 0,7.    

Outras variáveis úteis na predição de cicatrização das UPD, com acurácia superior a do ITB, embora menos disponíveis, incluem a pressão sistólica no hálux (≥ 30 mmHg), pressão de oxigênio transcutânea (≥ 25 mmHg) e pressão de perfusão da pele (≥ 40 mmHg).   

Triagem 

Todos os diabéticos devem ser classificados quanto ao risco de desenvolvimento de UPD, e a partir desse ponto serem avaliados periodicamente, com ênfase na educação sobre o autocuidado com os pés, uso de calçados apropriados e identificação precoce de lesões tróficas.   

Os pacientes de risco moderado ou alto para úlceras do pé diabético devem ser aconselhados a utilizar calçados terapêuticos ou botas de redistribuição de pressão, capazes de distribuir a carga sobre uma ampla área de contato.    

No seguimento dos pacientes, uma ferramenta auxiliar que tem se demonstrado útil é a termometria dérmica. A presença de manchas de calor em um dos pés, com diferença de temperatura > 2°C, serve de alerta aos pacientes para reduzir as caminhadas ao longo do dia, minimizando a sobrecarga de pressão na vigência de inflamação, que antecede a ulceração.    

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Classificação e ferramentas para a avaliação  

Um dos modelos mais utilizados na classificação das úlceras do pé diabético é o Wound, Ischemia and Foot Infection (WIfI), que apresenta boa acurácia na predição do risco de perda do membro e que engloba três itens:   

(A) Características da úlcera; 

(B) A avaliação da isquemia relacionada ao membro inferior; 

(C) A gravidade da infecção do pé diabético.   

Cada um desses itens é graduado em ausente (0), leve (1), moderado (2) ou grave (3 pontos), com pontuação total que varia entre 0 e 9.   

Dessa forma, tem-se um risco de amputação crescente conforme o estágio da classificação WIfI:   

Estágio 1: 0%;  

Estágio 2: 8%;  

Estágio 3: 11%; 

Estágio 4: 38%.

Abordagem das complicações da UPD 

Diante de um paciente com UPD inicialmente inspeciona-se a ferida, com objetivo de classificar as úlceras, conforme proposto no sistema WIfI.  

Na sequência, avalia-se a presença de infecção local e, conforme julgamento clínico, prossegue-se com hemograma, VHS de primeira hora e proteína C-reativa. Uma vez constatada a infecção, a antibioticoterapia e o desbridamento cirúrgico devem ser considerados.    

O desbridamento cirúrgico sistemático, preferencialmente com periodicidade semanal, com remoção do leito não-viável, incluindo as calosidades, promove a cicatrização e deve ser encorajado.  

A osteomielite deve ser aventada diante de VHS > 70 mm/h, teste positivo de sonda-osso (exploração do leito da ferida com probe metálico para surpreender anteparo ósseo na profundidade) e presença de fístulas. A avaliação inicial se dá com radiografias simples, reservando-se a ressonância magnética para os casos duvidosos. O padrão-ouro para o diagnóstico reside na biópsia e cultura de fragmentos ósseos, que permite direcionamento da antibioticoterapia sequencial.  

A cobertura da ferida deve fomentar um ambiente úmido que permita o crescimento dos tecidos e migração epitelial, desde que não gere maceração excessiva.   

Às feridas com exsudato escasso pode ser destinado o hidrogel, produto a base de glicerina e água, que confere umidade e auxilia no desbridamento autolítico, aliviando a dor. Por outro lado, feridas secretivas podem ser manipuladas com alginato, um gel úmido de absorção e que preenche os espaços mortos.   

Apesar do amplo emprego na prática clínica, as coberturas com ação antimicrobiana à base de prata ou iodo carecem de evidências fortes. As gazes são úteis na limpeza das úlceras, mas em geral não são recomendadas como cobertura primária, pois removem o tecido de granulação durante as trocas de curativo.  

Nas últimas décadas tem-se estudado o emprego de tampão de fibrina, leucócitos e plaquetas, provenientes da centrifugação do sangue venoso do próprio paciente, com deposição de disco de material autólogo na ferida; bem como produtos derivados de placenta, que tem demonstrados benefícios relativos à taxa de cicatrização da UPD.   

A terapia hiperbárica pode ser considerada em casos refratários ao tratamento convencional, embora as evidências sejam inconsistentes. A terapia por pressão negativa, por sua vez, tem boa indicação em feridas profundas e no manejo de feridas em cotos de amputação, sendo em alguns casos ponte para a enxertia cutânea.       

Os dispositivos de alívio de pressão, customizados para acomodar as deformidades pediosas, devem ser rotineiramente empregados, sendo que as botas não-removíveis de amplo contato, até a altura dos joelhos, demonstram maior eficácia, seguidas pelos dispositivos removíveis.  

Abordagens cirúrgicas para alívio de pressão podem ser empregadas em casos selecionados, como a tenotomia do tendão flexor diante de lesões em ápices dos dedos mínimos e alongamento do tendão de Aquiles diante de recorrência de úlceras plantares do antepé.    

Por fim, deve ser avaliada isquemia concomitante, uma vez que o restabelecimento do fluxo arterial pulsátil na isquemia crônica ameaçadora ao membro favorece a cicatrização e reduz o risco de amputação.  

A revascularização deve ser oferecida para a maioria dos pacientes, levando-se em conta o risco operatório e a anatomia vascular. O bypass cirúrgico tem demonstrado superioridade em relação à abordagem endovascular, minimizando eventos adversos maiores relacionados aos membros: amputação maior, reintervenção, trombectomia, trombólise ou mortalidade (42,6% Vs 57,4% – HR 0,68). Entretanto, a amputação primária é uma opção a ser considerada em idosos frágeis, pacientes com comorbidades graves, status-performance limitado e expectativa de vida restrita, especialmente naqueles incapazes de deambular.    

O tratamento multidisciplinar, incluindo enfermeiros especializados nos cuidados de feridas, podólogos, infectologistas, cirurgiões vasculares, ortopedistas, clínicos gerais e endocrinologistas, deve ser encorajado, pois tem potencial de minimizar eventos adversos graves, como as amputações (OR 0,4).   

Ressalta-se ainda a importância da reabilitação, do suporte nutricional com adequado aporte de proteínas e cuidados psicológicos. Nesse quesito, nota-se alta prevalência de depressão entre os pacientes com UPD, aproximando-se de 50% e implicando em incremento de mortalidade de até 2 vezes.   

Espera-se, com o adequado tratamento, uma taxa de cicatrização em 12 semanas das UPD entre 30 e 40%. Infelizmente, em 12 meses, 1 em 4 pacientes não alcança a plena cicatrização da UPD. Soma-se a esse dado a elevada taxa de recorrência, que atinge 42% em 1 ano e sobe para 65% em 5 anos. 

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Mensagens para a casa   

  • Um em cada três pacientes diabéticos desenvolverá úlceras do pé diabético (UPD) durante a vida, um evento que se associa ao incremento da mortalidade.  
  • A fisiopatologia da UPD envolve a neuropatia diabética sobreposta à doença arterial periférica (DAP).  
  • A avaliação periódica dos pés diabéticos deve incluir a pesquisa de sensibilidade protetora com monofilamento de Nylon ou teste do toque de Ipswich, além de sensibilidade vibratória, palpação dos pulsos tibiais e cálculo do índice tornozelo-braço (ITB). 
  • Recomenda-se o instrumento WIfI (Wound, Ischemia and Foot Infection) na avaliação sistematizada das UPD e predição do risco de amputação.  As infecções devem ser tratadas com antibioticoterapia e desbridamento cirúrgico sistemático. 
  • As coberturas das feridas devem fomentar um ambiente úmido, mas sem implicar em maceração excessiva dos tecidos. Discos de fibrina, leucócitos e plaquetas autólogos e produtos derivados de plaquetas têm se mostrado eficazes. 
  • Terapia hiperbárica e terapia de pressão negativa têm evidências conflitantes e podem ser empregadas em casos refratários e em ulcerações profundas pós-operatórias, respectivamente.  
  • A revascularização deve ser considerada em todos os pacientes, preferencialmente a cirúrgica, embora a amputação primária tenha indicação em pacientes frágeis que não deambulam.  
  • O tratamento multidisciplinar é encorajado e parece minimizar o risco de eventos adversos graves, como a amputação.  
  • A taxa de recorrência das UPD é alta, alcançando 65% em 5 anos.  

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