Síndrome de Behçet: atenção a essa condição inflamatória de alta morbimortalidade

A síndrome de Behçet (SB) é uma vasculite sistêmica primária que acomete veias e artérias de calibres variáveis. Trata-se de condição inflamatória multissistêmica crônica, em padrão de surto e remissão atrelada à morbimortalidade expressiva.  

A descrição histórica da doença nos remete à rota da seda e, ainda na atualidade, a prevalência é significativamente maior na Turquia: 420 casos por 100 mil habitantes, número que supera os dados europeus e norte-americanos em 26 e 80 vezes, respectivamente.   

O diagnóstico geralmente é estabelecido em torno dos 30 anos, sem predileção por sexo e maior com tendência às formas graves entre os homens.   

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Médica em atendimento com paciente com síndrome de Behçet

Fisiopatologia

A compreensão fisiopatológica é limitada, mas se especula um mecanismo autoimune e autoinflamatório, desencadeado pela interação entre fatores genéticos e gatilhos ambientais.    

As células apresentadoras de antígenos (APCs), expostas aos gatilhos ambientais, deflagram a sinalização intracelular e promovem a ativação de células NK e linfócitos T auxiliadores Th1 e Th17. A resposta Th1 envolve a liberação de TNF-α, interferon-γ, ativação de células T citotóxicas CD8+ e células NK. Por outro lado, a resposta Th2 é pautada pela IL-17 e IL-23, que estimulam a quimiotaxia de neutrófilos. Ambos elementos cooperam para a via de sinalização pró-inflamatória NF-KB. O resultado final é a instalação do processo inflamatório e dano tecidual.  

Os neutrófilos constituem a principal célula infiltrativa nas lesões da SB, produzindo espécies reativas de oxigênio e liberando armadilhas extracelulares (NETs), associadas ao estado pró-trombótico. As biópsias cutâneas são marcadas pela vasculite leucocitoclástica, trombos microvasculares, infiltrados neutrófilos ou linfocíticos perivasculares e dérmicos.  

Predisposições genéticas 

  • MHC de classe I HLA-B*51 (especialmente o 51:01);  
  • Gene codificador da ERAP1, uma aminopeptidase associada ao processamento antigênico no retículo endoplasmático (OR 4,56); 
  • Genes relacionados a: 
    • Polarização Th1 e TH17: IL23R-IL12RB2 (OR 1,28), STAT4 (OR 1,27) e IL-10 (OR 1,45); 
    • Regulação da atividade das células NK: KLRC4 (OR 0,78);  
    • Quimiotaxia celular: CCR1, CCR2 e CCR3 (OR 0,72).  
  • Polimorfismos de nucleotídeos únicos (SNPs), como o TNFAIP3 e MEFV.

Gatilhos ambientais suspeitos 

  • Microorganismos (bactérias e vírus, como estreptococos e HSV-1); 
  • Desequilíbrio entre a microbiota da mucosa salivar e a intestinal;  
  • Alimentos libertadores de histamina (frutas cítricas, nozes e queijo); 
  • Higiene oral inadequada;  
  • Estresse emocional.  

Manifestações clínicas  

As manifestações clínicas são heterogêneas e acometem principalmente as seguintes estruturas:  

Pele e mucosas

O envolvimento mucocutâneo é a única apresentação da doença em até um terço dos casos. As ulcerações orais recorrentes são as manifestações mais comuns. Outras alterações incluem as úlceras genitais, lesões cutâneas papulopustulosas (acneiformes e pseudofoliculite) e lesões nodulares (paniculite, tromboflebite superficial e eritema nodoso). As úlceras genitais, tipicamente localizadas em escroto e grandes lábios, tendem a evoluir com cicatrizes e são maiores, mais profundas e duradouras do que as orais. 

Articulações

As manifestações articulares estão presentes em metade dos casos de SB e são caracterizadas por mono/oligoartralgia ou artrite, de caráter não deformante e com predileção por joelhos, tornozelos, punhos e cotovelos. Por vezes observa-se entesopatia, à semelhança das espondiloartrites periféricas. Entretanto, o envolvimento das articulações sacroilíacas e axial é incomum.   

Olhos

O envolvimento ocular, presente em metade dos casos, é o mais proeminente entre os órgãos principais, especialmente nos primeiros dois anos de evolução da doença. A apresentação mais comum é a panuveíte. Hipópio costumeiramente está presente na sequência de uveíte anterior grave.

Outras manifestações incluem a vitreíte, retinite e vasculite retiniana oclusiva. A ausência de uveíte anterior granulomatosa ou coroidite são sugestivas da síndrome de Behçet. Os fatores de risco para mau prognóstico oftalmológico incluem o sexo masculino, envolvimento da câmara posterior, frequência de ataques superior a 3/ano e presença de opacidade vítrea com edema macular. O risco de perda da visão com a utilização do arsenal terapêutico moderno é de 25% para 13% em 10 anos.   

Sistema vascular

A síndrome de Behçet é capaz de envolver veias e artérias de calibres variados, em ataques recidivantes, com recorrência acumulada em 5 anos de 40%. As manifestações mais comuns são a tromboflebite superficial e a trombose venosa profunda, presentes em aproximadamente 30% dos casos, com predileção para os membros inferiores.

O embolismo pulmonar, entretanto, é raro, em parte pela adesão do trombo às paredes vasculares. Em contrapartida, espera-se maior frequência de síndrome pós-trombótica pela dificuldade de recanalização vascular. A trombose em sítios não usuais, como veia porta, supra-hepáticas, cava superior e cava inferior, bem como seios venosos cerebrais, também tem sido observada.   

No leito vascular arterial, os aneurismas são as manifestações mais proeminentes, com predileção pela aorta e artérias periféricas, embora oclusões trombóticas ou estenoses arteriais também possam ocorrer. O acometimento da artéria pulmonar, apesar de raro, é altamente específico para a síndrome de Behçet.   

O envolvimento cardíaco se dá em 5% dos casos e pode estar associado à pericardite, miocardite, arterite coronária, valvulite, trombose intracardíaca ou fibrose endomiocárdica.   

As manifestações vasculares são uma das grandes responsáveis pelas mortes entre os indivíduos acometidos, principalmente em decorrência de aneurismas aórticos e pulmonares, bem como síndrome de Budd-Chiari. 

Sistema nervoso central

As manifestações neurológicas não ultrapassam os 30% dos casos. Na maioria das vezes, o envolvimento é parenquimatoso (75% dos casos). O acometimento não parenquimatoso (25% dos casos) é destacado pela trombose venosa cerebral, que pode ser entendida como manifestação vascular.   

A atividade parenquimatosa pode ocorrer em paralelo à oftalmológica, especialmente na uveíte posterior, podendo se apresentar como neurite óptica retrobulbar, papiledema e paralisia dos nervos oculomotor e abducente.   

As principais alterações parenquimatosas se localizam no tronco cerebral, particularmente na junção mesodiencefálica. Os sintomas incluem cefaleia, hemiparesia e crises convulsivas e, menos frequentemente, os pacientes se apresentam com síndrome de mielite transversa ou pseudotumor cerebral.  

A neuro-Behçet está associada ao acúmulo de disfunções neurológicas e mortalidade, com a incidência acumulada de ambos desfechos de 60% em 10 anos.  

Trato gastrointestinal

As manifestações gastrointestinais da SB são infrequentes, limitando-se a não mais do que 20% dos casos. Os achados compatíveis são ulcerações gastrointestinais, responsáveis por dor abdominal, diarreia e sangramento retal, trazendo desafios para o diagnóstico diferencial com as doenças inflamatórias intestinais.   

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Diagnóstico  

O diagnóstico da síndrome de Behçet é desafiador, pois faltam elementos patognomônicos. Os critérios classificatórios foram desenvolvidos em 1990 e revisados em 2014 (ICBD: International Criteria for Behçet’s Disease), mas não podem ser utilizados de maneira conclusiva para confirmar ou afastar o diagnóstico. Algumas dicas clínicas que sugerem fortemente o diagnóstico incluem cicatrizes genitais, manifestações oftalmológicas e vasculares típicas e lesões neurológicas que se estendem dos núcleos da base ao tronco cerebral.    

Os diagnósticos diferenciais incluem as deficiências nutricionais, HIV, infecções herpéticas, PFAPA, doença celíaca, doenças inflamatórias intestinais, espondiloartropatias, LES, infecções bacterianas, tuberculose, hanseníase, vasculites sistêmicas de outra natureza, sarcoidose, síndrome antifosfolípides, doenças mieloproliferativas e trombofilias, entre outros.   

Prognóstico  

A mortalidade global estimada é de 5% em 8 anos e 9,8% em 20 anos. Entretanto, alguns fatores estão relacionados ao incremento da mortalidade, entre os quais:  

  • Sexo masculino (HR 4,94); 
  • Envolvimento arterial (HR 2,51);  
  • Alta frequência de crises (HR 2,37). 

Tratamento 

Os principais objetivos do tratamento são o controle do processo inflamatório e a prevenção de recorrência, com base em dados clínicos, laboratoriais (proteína C-reativa) e radiológicos.  

As manifestações mucocutâneas não graves são tratadas com terapia anti-inflamatória local (glicocorticoides tópicos, bucais, oftalmológicos ou intra-articulares) e colchicina. O apremilast, uma pequena molécula imunomoduladora e inibidora da fosfodiesterase 4, é um tratamento de segunda linha para ulcerações orais refratárias.   

Por sua vez, as manifestações orgânicas maiores e refratárias são manejadas com glicocorticoides sistêmicos e terapia imunossupressora (azatioprina, talidomida, interferon alfa, etanercept, infliximabe e adalimumabe). O ustekinumabe, um inibidor de IL-12 e IL-23, bem como o tofacitinibe, um inibidor do receptor da IL-6, são considerados promissores.     

O tratamento principal dos eventos vasculares é a imunossupressão, e o papel da anticoagulação segue em debate. Os corticoides podem ser combinados à ciclofosfamida, azatioprina ou anti-TNF. O tratamento imunossupressor pré-emptivo é fundamental nos casos de acometimento arterial, reduzindo as complicações pós-operatórias como trombose de próteses e deiscências anastomóticas.  

Nas manifestações neurológicas graves, além das doses altas de corticosteroides, a ciclofosfamida tende a se associar com aumento de sobrevida livre de eventos e os anti-TNF têm se tornado a primeira linha de tratamento.    

Nas manifestações gastrointestinais, o uso dos corticoides pode ser combinado com derivados de 5-aminossalicilatos nos casos leves ou azatioprina, anti-TNF ou talidomida nos casos graves ou refratários. Nos casos que evoluem com perfuração, a terapia imunossupressora concomitante é recomendada, com o objetivo de minimizar as complicações pós-operatórias.   

Nas manifestações graves, as discussões permeiam a escolha entre infliximabe e ciclofosfamida, e os resultados de estudos já em andamento são esperados.  

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Conclusão e mensagens práticas 

  • A síndrome de Behçet acomete adultos jovens, com morbimortalidade expressiva, especialmente entre os jovens.  
  • O caráter multissistêmico é pautado em manifestações mucocutâneas, articulares, oftalmológicas, neurológicas, vasculares e gastrointestinais.  
  • A ausência de achados patognomônicos traz a necessidade de afastar cuidadosamente diagnósticos diferenciais.  
  • O tratamento dos casos leves é realizado com corticoesteroides locais e colchicina. Os casos graves, com acometimento de órgãos maiores ou refratários são manejados com corticoterapia sistêmica e terapia imunossupressora.   

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