Síndrome antifosfolípide: tudo o que o clínico precisa saber

A síndrome antifosfolípide (SAF) é uma doença autoimune, de etiologia desconhecida, que se apresenta através da ocorrência de eventos trombóticos e/ou gestacionais na presença persistente de anticorpos antifosfolípides (aPL). Trata-se da trombofilia adquirida mais frequente na população. Ela pode ser primária, quando surge na ausência de outras doenças autoimunes, ou secundária, quando associada a outras doenças autoimunes, em especial o lúpus eritematoso sistêmico (LES).   

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Síndrome antifosfolípide

Epidemiologia 

A síndrome antifosfolípide é considerada uma doença rara, com incidência estimada em 1-5 casos por 100.000 habitantes-ano e uma prevalência estimada de 40-50 casos por 100.000 habitantes. Ela predomina em pacientes do sexo feminino (2-5:1), com um pico de incidência por volta dos 30-40 anos de idade. Quando acomete o sexo masculino, o pico de incidência é mais tardio (55-60 anos) e geralmente existe uma maior frequência de fatores de risco cardiovascular associados. 

É conhecido que cerca de 1-5% da população apresenta positividade para os aPL. No entanto, a maioria dessas pessoas não apresenta sintomas relacionados a esses anticorpos, que geralmente possuem títulos baixos e são transitórios. A taxa de progressão para SAF em pacientes com perfil de alto risco (tripla positividade) chega a 5,3% ao ano. Estudos populacionais estimam que podemos identificar a presença de aPL em 13% dos acidentes vasculares encefálicos isquêmicos (AVCi) em jovens, 11% dos infartos agudos do miocárdio (IAM) em jovens, 9,5% das tromboses venosas profundas (TVP) e 6% das morbidades gestacionais. 

A SAF possui forte associação com LES. Cerca de 20-40% de todos os pacientes com LES são positivos para os aPL e cerca de 10-15% do total evoluem com eventos definidores de SAF. O contrário também é verdadeiro: pacientes com SAF primária possuem maior risco de evoluir com LES (OR 28,5), o que ocorre em 7% dos casos. 

Fisiopatologia

A presença de predisposição genética associada a gatilhos ambientais é capaz de provocar uma desregulação imunológica, com perda da tolerância, levando ao surgimento de linfócitos T e B autorreativos e produção de aPL. 

Apesar disso, a presença isolada de aPL não é capaz de provocar trombose (teoria do second hit). Em estados de repouso, a beta-2 glicoproteína I, uma proteína anticoagulante natural do nosso organismo, circula em uma conformação circular, mantendo o seu domínio I (principal epíotopo da SAF) críptico. Quando existem dano endotelial de alguma origem (pelos gatilhos ambientais e fatores de risco cardiovasculares, por exemplo – segundo hit), essa proteína se liga ao endotélio e sofre uma mudança conformacional, expondo o domínio I.

Com isso, os aPL interagem com esse epítopo e provocam início da cascata inflamatória e de coagulação. Nesse processo, há participação de diversos elementos celulares, como célula endotelial, monócitos, neutrófilos (realizando NETose) e plaquetas, além de vias de sinalização intracelular (mediada pelo toll-like receptor tipo 4 – TLR4), citocinas inflamatórias (IL-1, IL-6, IL-8 e TNF) e complemento (C5a). O resultado final do processo é a agregação plaquetária e formação do trombo. 

Na síndrome antifosfolípide gestacional, existem alguns processos patogênicos particulares. O mecanismo trombótico ocorre de maneira semelhante. No entanto, além do processo trombótico, também existe participação da anexina 5 e TLR4 que gera uma menor proliferação e migração de células trofoblásticas, que leva a uma doença isquêmica placentária e pré-eclâmpsia. 

As manifestações mais classicamente atribuídas à SAF são os eventos trombóticos e as perdas gestacionais. Apesar disso, várias outras manifestações descritas como “não critério” ou “não trombóticas” podem estar presentes. Vale lembrar que, no caso de associação com LES, todas as manifestações clínicas dessa doença podem estar presentes. 

As manifestações trombóticas podem ser venosas ou arteriais, micro ou macrovasculares, ou seja, podem acometer qualquer território. É importante que haja documentação por imagem ou análise histopatológica desses eventos trombóticos para aumentar a confiança do diagnóstico. Caso esta última seja realizada, é importante que não exista sinais de vasculite na lâmina para que possamos considerar o diagnóstico de SAF. 

As tromboses venosas são as mais frequentemente observadas (cerca de 60-70% dos casos), acometendo principalmente as veias dos membros inferiores (TVP), que podem evoluir com tromboembolismo pulmonar (TEP – alguns evoluindo com hipertensão pulmonar tromboembólica crônica). Diversos outros sítios podem ser acometidos, como trombose dos seios venosos cerebrais (com hipertensão intracraniana), da via porta (com hipertensão portal), território esplâncnico (com isquemia relaciona à congestão), veias renais (com injúria renal aguda), suprarrenais (com hemorragia e insuficiência suprarrenal aguda), entre outros. 

As tromboses arteriais acometem cerca de 40% dos casos. Dentre eles, o AVCi é o evento mais frequente, seguido do IAM. Dependendo do território acometido, podemos ter isquemia mesentérica, isquemia de membros com necessidade de amputação, isquemia renal e perda visual. 

Acometimento da microcirculação coloca a síndrome antifosfolípide no grupo das microangiopatias trombóticas. Essa manifestação pode ocorrer isoladamente em alguns órgãos, como na nefropatia pela SAF, ou no contexto da CAPS, forma catastrófica da doença (vide abaixo). 

Com relação às manifestações gestacionais, podemos ter perdas fetais entre 10 e 24 semanas de idade gestacional (o mais típico é acometer o final da gestação), parto prematuro < 34 semanas por pré-eclâmpsia, eclâmpsia ou insuficiência placentária e perdas precoces de repetição (3 ou mais aumentam a especificidade). Diante desses eventos, a análise morfológica fetal e histopatológica da placenta são importantes para uma melhor avaliação do diagnóstico. 

Diversas manifestações não critério foram descritas, como nefropatia, doença cardíaca valvar, plaquetopenia, livedo reticular, fenômeno de Raynaud, vasculopatia livedoide, tromboflebite, anemia hemolítica autoimune, hipertensão arterial pulmonar, hemorragia alveolar, osteonecrose, coreia, distúrbio cognitivo, crises convulsivas, enxaqueca, mielite transversa, amaurose fugaz, perda auditiva neurossensorial, entre outras.

Dentre essas merecem destaque: (1) nefropatia pela SAF, que é uma microangiopatia trombótica que necessita de documentação por biópsia (microtrombos, espessamento e oclusão arteriolar, atrofia cortical focal, tireoidização tubular); (2) plaquetopenia, que raramente é grave (mantendo-se em torno de 50-100.000), mas pode se associar com um risco aumentado de eventos trombóticos; (3) livedo reticular racemoso, que é uma expressão clínica frequente (25%) e, portanto, pode auxiliar visualmente no diagnóstico da doença; e (4) valvopatia, que geralmente é bem tolerada (menos de 5% necessitam de cirurgia), acomete a face atrial da mitral (mais comum) ou vascular da aórtica e pode fazer diagnóstico diferencial com a febre reumática. 

A variante catastrófica (CAPS) se caracteriza pela ocorrência de eventos trombóticos múltiplos (3 ou mais), com evolução aguda (< 1 semana), na presença de aPL. A documentação histológica do processo é sempre bem indicada.

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Exames complementares

Para o diagnóstico da síndrome antifosfolípide, é fundamental a realização de exames complementares que documentem a presença persistente dos aPL em indivíduos com alta probabilidade pré-teste. 

Atualmente, dispomos de três aPL incluídos nos critérios de classificação da SAF que podem ser dosados laboratorialmente,  a saber: (1) anticoagulante lúpico (LA), (2) anticardiolipina (aCL) IgG e IgM e (3) anti-beta-2 glicoproteína 1 (aß2GPI) IgG e IgM. Todos eles devem ser repetidos após um intervalo mínimo de 12 semanas para confirmar sua positividade persistente. 

O anticoagulante lúpico é uma prova funcional de coagulação, através da qual é possível identificar a presença de um inibidor inespecífico da coagulação (anticoagulante lúpico). Sempre deve ser realizado com dois métodos diferentes, com etapas de screening e confirmação (atualmente, PTT LA sensível com confirmação pela sílica e veneno da víbora de Russel diluído [dRVVT] screening e confirmatório). Na primeira etapa, é avaliar se o PTTa está alargado. Posteriormente, mistura-se o plasma do paciente com pool de plasma de doadores normais, para correção de possíveis deficiências de fatores da coagulação (caso presente, o PTTa irá se normalizar).

Caso não se normalize, passamos para a última etapa na qual serão acrescentados fosfolipídios em excesso, visando neutralizar os aPL, se presentes. Caso o PTTa se normalize, o diagnóstico final é de que há presença de aPL, com atividade anticoagulante lúpica presente. Como se trata de um exame funcional, sofre grande influência com o uso de anticoagulantes orais e parenterais. 

Já o aCL IgG e IgM e o aß2GPI IgG e IgM são exames realizados por ELISA. O aCL deve estar acima de 40 unidades para ser considerado positivo, enquanto que o aß2GPI deve estar acima do percentil 99 para a população analisada. Por serem exames imunoenzimáticos, podem ser realizados com o paciente em anticoagulação. 

A dosagem dos três anticorpos critérios é importante, pois a presença de positividade para os três (conhecida como tripla positividade) está implicada em um alto risco de recorrência (12% em 1 ano, 26% em 5 anos e 44% em 10 anos). 

Outros exames podem se alterar de acordo com as manifestações clínicas: plaquetopenia, anemia, elevação de creatinina, proteinúria etc. A pesquisa de autoanticorpos é útil em casos de suspeita de LES. A avaliação do perfil lipídico e glicêmico é fundamental, já que a presença de fatores de risco cardiovascular podem aumentar o risco de recorrência trombótica. 

O pré-natal de pacientes com SAF deve ser considerado de alto risco e os exames pré-natais devem seguir as indicações obstétricas.   

Classificação e diagnóstico da síndrome antifosfolípide

O diagnóstico da síndrome antifosfolípide é clínico e laboratorial e pode ser endossado pelos critérios de classificação vigentes (que não devem ser encarados como critérios  diagnósticos).  

De acordo com os critérios de Sidney (Miyakis, 2006), para ser classificado como SAF, o paciente deve apresentar um critério clínico e um critério laboratorial. Os critérios clínicos são: (1) trombótico: trombose arterial, venosa ou de pequenos vasos, com documentação por imagem ou histopatológica sem sinais de vasculite, e/ou (2) gestacional: perda fetal entre 10 e 34 semanas, parto prematuro < 34 semanas por eclampsia, pré-eclâmpsia ou insuficiência placentária, ou 3 ou mais perdas precoces com < 10 semanas.

Os critérios laboratoriais são: positividade, em duas ou mais ocasiões com intervalo mínimo entre dosagens 12 semanas, para o LA (realizado de acordo com os guidelines da ISTH), aCL IgM ou IgG > 40 (medido através de ELISA) e/ou aß2GPI IgM ou IgG > percentil 99 (medido através de ELISA). 

Os novos critérios de classificação estão em revisão no momento, mas ainda não foram publicados.  

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial da SAF deve ser realizado com outras trombofilias adquiridas ou congênitas, como fator V de Leiden, mutação do gene da protrombina, deficiência de proteínas C e S e de trombina, doenças mieloproliferativas e hemoglobinúria paroxística noturna.

Na forma catastrófica, faz diagnóstico diferencial com a púrpura trombocitopênica trombótica, síndrome hemolítico-urêmica, síndrome HELLP, coagulação intravascular disseminada, hipertensão maligna acelerada e crise renal esclerodérmica. As perdas gestacionais precoces fazem diagnóstico diferencial com aneuploidias, insuficiência de corpo lúteo e gravidez tubária, enquanto que as tardias o fazem com incompetência istmocervical, descolamentos e anomalias placentárias. 

Tratamento da síndrome antifosfolípide

O tratamento da síndrome antifosfolípide trombótica envolve medidas não farmacológicas e farmacológicas. 

Dentre as medidas não farmacológicas, o paciente deve ser estimulado a adotar hábitos de vida saudáveis, com controle dos fatores de risco cardiovasculares. Além disso, os anticoncepcionais com estrogênio estão proscritos, devendo ser trocados por progestágenos puros ou dispositivos intrauterinos. Ademais, na concomitância com LES, este deve ser controlado para reduzir o risco de novos eventos trombóticos. 

O tratamento farmacológico consiste na anticoagulação por toda a vida. As drogas de escolha são os antagonistas da vitamina K (VKA). Os alvos de INR variam com o tipo de evento: eventos venosos devem ter o alvo de INR entre 2 e 3. Caso o paciente apresente recorrência de trombose venosa com o INR no alvo, podemos aumentar o alvo para 3-4 ou acrescentar o AAS.

No caso de eventos arteriais, o alvo é INR 3-4 ou INR 2-3 com AAS desde o início; caso haja recorrência com INR no alvo, podemos aumentar para INR 3-4 com AAS. Em pacientes com muitas recorrências, podemos também considerar o uso contínuo de enoxaparina em doses terapêuticas. O uso de anticoagulantes orais diretos (DOACs) não deve ser feito na SAF, pelo risco de recorrência venosa e arterial. 

No caso da SAF gestacional, o tratamento é com enoxaparina subcutânea em doses profiláticas (1 mg/kg/dia), associada ao AAS (prevenção de pré-eclâmpsia). Caso a paciente tenha apresentado perda na vigência de enoxaparina profilática, devemos aumentar para terapêutica (1 mg/kg 12/12 horas), associada ao AAS.

Caso a paciente já tenha SAF trombótica previamente diagnosticada, como o uso de varfarina é contraindicado durante a gestação, devemos fazer a troca para enoxaparina terapêutica desde o início, em associação com AAS. 

A prevenção primária de eventos com AAS 100 mg/dia pode ser realizada em pacientes com tripla positividade, LA positivo ou aCL em altos títulos (> 80), com SAF gestacional e naqueles com LES associado. 

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Conclusão

A síndrome antifosfolípide é uma trombofilia adquirida de etiologia autoimune com alta morbidade, grande redução na qualidade de vida e alta chance de recorrência. Seu reconhecimento e tratamento adequados podem prevenir acúmulo de danos e sequelas. 

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