Sequelas neurológicas após quadro de meningite bacteriana na infância 

A Meningite Bacteriana (MB) constitui uma inflamação das membranas e do líquor que circunda o cérebro e a medula espinhal, resultante de uma infecção bacteriana no Sistema Nervoso Central (SNC). Apesar da disponibilidade de terapia antibiótica, a MB em crianças está correlacionada com elevada mortalidade e significativo risco de sequelas neurológicas em longo prazo, como distúrbios convulsivos, déficits neurológicos focais, perda auditiva e comprometimento cognitivo.  

Os limites na capacidade dos antibióticos para Transpor a Barreira Hematoencefálica (BHE), juntamente com a questão clínica da resistência antimicrobiana, contribuem para tais riscos. Entre os sobreviventes, a prevalência de incapacidades permanentes varia entre 20% e 50%.  

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Infelizmente, os estudos sobre os riscos de incapacidades em longo prazo após a MB infantil são escassos e, muitas vezes, se concentram em deficiências bem documentadas, como a perda auditiva, podendo negligenciar ou subestimar os riscos de deficiências menos aparentes, como distúrbios comportamentais ou psiquiátricos.  

Além disso, a maioria dos estudos existentes não incorpora um grupo de controle, o que dificulta a determinação precisa do aumento real do risco associado à MB. Diante dessa escassez de dados na literatura acerca do tema, um estudo realizado na Suécia consistiu em avaliar o risco de incapacidades em indivíduos diagnosticados com MB durante a infância no país, em comparação com controles correspondentes da população geral, considerando distintos tipos de deficiências, causas bacterianas predominantes (Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis e Haemophilus influenzae) e idades no momento do diagnóstico, ao longo de um período de acompanhamento de até 35 anos. Os resultados foram publicados no JAMA Network Open. 

Sequelas neurológicas após quadro de meningite bacteriana

Metodologia do estudo sobre meningite bacteriana

O estudo, liderado pelo Karolinska Institutet em Estocolmo, consistiu em uma coorte retrospectiva nacional baseada em prontuários e incluiu indivíduos com diagnóstico de MB (menores de 18 anos) e controles da população geral pareados (1:9) por idade, sexo e local de residência. A população estudada consistiu em indivíduos nascidos na Suécia e diagnosticados com MB, conforme os códigos de classificação internacional de doenças CID-9 (036A e 320) e CID-10 (G00 e A390), listados no “Registro Nacional de Pacientes” entre 1987 e 2021.  

Estes indivíduos tinham menos de 18 anos no momento do diagnóstico, viveram pelo menos um dia após essa data e não apresentavam registro prévio de infecção do SNC.  

Para cada caso, foram selecionados nove controles nascidos na Suécia, do mesmo sexo, residentes na mesma área geográfica, nascidos no mesmo ano civil, com idade superior a 18 anos na data do diagnóstico, vivos pelo menos um dia após essa data e sem histórico de MB ou infecção do SNC anteriormente registrados. Os dados foram analisados de 13 de julho de 2022 a 30 de novembro de 2023. 

As sequelas em longo prazo avaliadas foram: deficiências cognitivas, convulsões, perda auditiva, distúrbios da função motora, distúrbios visuais, distúrbios comportamentais e emocionais e lesões estruturais intracranianas. 

Resultados 

A coorte englobou 3.623 indivíduos que receberam diagnóstico de meningite bacteriana durante a infância, juntamente com 32.607 controles da população em geral. A idade média no momento do diagnóstico foi de 1,5 anos (intervalo interquartil, 0,4-6,2 anos), sendo 44,2% mulheres e 55,8% homens. O tempo médio de acompanhamento foi de 23,7 anos (intervalo interquartil, 12,2-30,4 anos). 

Indivíduos diagnosticados com MB apresentaram uma incidência cumulativa maior de todas as sete deficiências estudadas, e 1.052 (29,0%) desses indivíduos desenvolveram pelo menos uma deficiência. Os maiores riscos absolutos de incapacidades foram observados para distúrbios comportamentais e emocionais, perda auditiva e distúrbios visuais. 

As taxas de risco ajustadas (HRs) estimadas revelaram um aumento significativo do risco relativo para os casos em comparação com os controles em todas as sete deficiências. Os HRs ajustados foram mais elevados para lesões estruturais intracranianas (26,04, intervalo de confiança de 95% [IC 95%], 15,50-43,74), perda auditiva (7,90 [IC 95%, 6,68-9,33]) e distúrbios da função motora (4,65 [IC 95%, 3,72-5,80]). 

Os HRs ajustados para deficiências cognitivas, convulsões, perda auditiva e distúrbios da função motora foram significativamente maiores para infecção por Streptococcus pneumoniae em comparação com infecção por Haemophilus influenzae, ou por Neisseria meningitidis. Além disso, os HRs ajustados para deficiências cognitivas, convulsões, distúrbios comportamentais e emocionais e lesões estruturais intracranianas foram significativamente maiores para crianças diagnosticadas com MB em idade abaixo da mediana. 

Conclusão sobre os impactos de longo prazo da meningite bacteriana

A MB diagnosticada durante a infância pode acarretar consequências significativas que perduram até a idade adulta, manifestando-se por meio de incapacidades duradouras. Crianças que recebem o diagnóstico de meningite causada por Streptococcus pneumoniae e aquelas diagnosticadas em idade precoce (inferior à mediana) enfrentam um maior risco de desenvolvimento dessas deficiências.  

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Os resultados desta análise de uma coorte enfatizam a importância da implementação de medidas preventivas contra a MB, bem como da realização de esforços para a detecção precoce de deficiências entre os sobreviventes infantis, particularmente relacionadas a distúrbios comportamentais e emocionais, perda auditiva e problemas visuais. 

Comentários 

Considero este estudo de extrema importância, pois fornece insights valiosos sobre os impactos de longo prazo da MB diagnosticada na infância. Ao destacar o risco aumentado de desenvolvimento de deficiências, especialmente entre as crianças diagnosticadas precocemente e aquelas afetadas pelo Streptococcus pneumoniae, o estudo ressalta a necessidade de intervenções preventivas e de monitoramento adequado dos sobreviventes. Além disso, ao identificar áreas específicas de preocupação, como distúrbios comportamentais, perda auditiva e problemas visuais, ele fornece uma base para futuras pesquisas e direcionamento de recursos para a prevenção e tratamento dessas complicações. 

Em suma, este estudo contribui significativamente para o entendimento dos desafios associados à meningite bacteriana na infância e destaca a importância da vigilância contínua e do apoio aos pacientes afetados. Na prática, observo, de fato, a ocorrência de piores desfechos (mortalidade ou sequelas neurológicas) em pacientes com meningite pneumocócica (e, considerando o Brasil, com meningite tuberculosa).

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Autor

Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Valença ⦁ Residência médica em Pediatria pelo Hospital Federal Cardoso Fontes ⦁ Residência médica em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Saúde Materno-Infantil (UFF) ⦁ Doutora em Medicina (UERJ) ⦁ Aperfeiçoamento em neurointensivismo (IDOR) ⦁ Médica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ ⦁ Professora adjunta de pediatria do curso de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques ⦁ Membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Pediatria do IDOR no Rio de Janeiro ⦁ Acompanhou as UTI Pediátrica e Cardíaca do Hospital for Sick Children (Sick Kids) em Toronto, Canadá, supervisionada pelo Dr. Peter Cox ⦁ Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) ⦁ Membro do comitê de sedação, analgesia e delirium da AMIB e da Sociedade Latino-Americana de Cuidados Intensivos Pediátricos (SLACIP) ⦁ Membro da diretoria da American Delirium Society (ADS) ⦁ Coordenadora e cofundadora do Latin American Delirium Special Interest Group (LADIG) ⦁ Membro de apoio da Society for Pediatric Sedation (SPS) ⦁ Consultora de sono infantil e de amamentação ⦁ Instagram: @draroberta_pediatra

Referências bibliográficas:
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  • Mohanty S, et al. Increased Risk of Long-Term Disabilities Following Childhood Bacterial Meningitis in Sweden. JAMA Netw Open. 2024;7(1):e2352402. DOI: 10.1001/jamanetworkopen.2023.52402


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