Novas evidências sobre o controle glicêmico intensivo na UTI

A hiperglicemia hospitalar é uma condição que está associada a piora de desfechos em pacientes internados, como maior risco de infecções, tempo de permanência hospitalar e até mesmo mortalidade. Os maiores estudos realizados até hoje para avaliação do impacto do controle da hiperglicemia são heterogêneos entre si, tanto quanto ao resultado como pela metodologia. Os maiores ensaios clínicos randomizados realizados no início dos anos 2000 se baseavam em populações cirúrgicas, sobretudo em pós-operatório de cirurgia cardíaca. Nesses indivíduos, um controle glicêmico intensivo parecia ser benéfico.

O panorama mudou após o estudo NICE SUGAR, publicado em 2009 no New England Journal of Medicine, que comparou o controle glicêmico intensivo (metas de glicemia < 110 mg/dL) versus controle “permissivo”, com metas de glicemias até 180 mg/dl. Nesse estudo, houve maior risco de hipoglicemias no grupo intensivo e aumento da mortalidade. A população selecionada era menos específica, contendo menos indivíduos em pós-operatório de cirurgias cardíacas e aumentando a participação de pacientes clínicos e advindos de outros tipos de pós-operatório.

Mesmo assim, a heterogeneidade dos estudos previamente mencionada leva a alguns questionamentos. Em primeiro lugar, vários desses estudos prévios utilizavam nutrição parenteral precoce, prática que deixou de ser recomendada e que por si só poderia levar a disglicemia e piora de desfechos. Em segundo lugar, a falta de padronização quanto às mensurações de glicemia e protocolos de uso de insulina podem afetar os resultados, levando aos achados conflitantes presentes na literatura.

Leia também: Comparação entre métodos de avaliação da glicemia: quais os mais precisos?

Com o objetivo de trazer mais evidências ao assunto e baseando-se em uma metodologia mais clara, com menor risco de influência desses vieses, foi elaborado um ensaio clínico randomizado realizado em dez centros na Bélgica com o objetivo de comparar o efeito do controle glicêmico intensivo vs. controle liberal em indivíduos que não foram expostos a nutrição parenteral precoce (após mais do que sete dias da admissão). O estudo foi nomeado de “TGC-Fast” e publicado no NEJM no final de setembro/2023.

Novas evidências sobre o controle glicêmico intensivo na UTI

Novo estudo sobre controle glicêmico

O estudo foi um RCT, multicêntrico, duplo cego, que comparou o controle glicêmico intensivo (alvo de glicemia de jejum de 80 a 110 mg/dL). vs controle liberal (180 a 215 mg/dL) em indivíduos admitidos em UTIs em 10 centros da Bélgica. O recrutamento aconteceu entre 2018 e 2022 (houve um momento de pausa durante a primeira onda da pandemia de COVID-19, em 2020). A hipótese dos autores era de que, em indivíduos sem nutrição parenteral, a diferença dos níveis de glicemia seria menor e, portanto, o impacto do controle glicêmico em desfechos seria igualmente menor. Por isso, houve a necessidade de inclusão de um N maior (9.230 pacientes) para se detectar uma diferença de um dia de internação com poder de 80% e um alfa de 0,05.

A intervenção proposta seguia o algoritmo computadorizado “LOGIC”, que padronizou a forma de aferição da glicemia e dos ajustes glicêmicos. Em indivíduos que estavam com cateter arterial, a amostra de glicose vinha da análise direta do sangue e nos que não possuíam, a partir das glicemias capilares.

A intervenção do estudo era parada se o paciente começasse a comer, se o cateter venoso central fosse sacado ou na alta da UTI para enfermaria, o que ocorresse antes.

O desfecho primário analisado foi o tempo de internação na UTI; O desfecho de segurança foi mortalidade em 90 dias e hipoglicemias graves (definidas como glicemias menores que 40 mg/dL); Os desfechos secundários (para os quais o trabalho não apresentou poder estatístico e não foram realizados ajustes para outras variáveis) foram piora da função renal, lesão hepática (alterações em TGO, TGP, FA, GGT e bilirrubinas), infecções, necessidade de suporte respiratório, suporte hemodinâmico, tempo para alta hospitalar (não apenas UTI), mortalidade intra-hospitalar e mortalidade na UTI.

A análise realizada nesse estudo foi “intention to treat”, ou seja, o dado de todos os indivíduos randomizados foram contabilizados ao final.

Resultados

Ao final, 4.622 pacientes foram randomizados ao grupo “intensivo” e 4.608 ao grupo “liberal”. A média de idade dos participantes foi de 67 anos; apenas cerca de 20% desses tinham diagnóstico prévio de diabetes. O diagnóstico de 45% da amostra era pós-operatório de cirurgia cardíaca, porém outros diagnósticos como causas neurológicas, cirurgias abdominais, transplantes, traumas e outras causas também foram incluídas. Percebe-se, no entanto, que a grande maioria dos indivíduos estavam em pós-operatório.

Desfechos

Não houve diferença quanto ao tempo de internação na UTI entre os grupos de controle intensivo e controle liberal. O hazard ratio foi literalmente 1,00 (0,96 – 1,04; IC 95%; p = 0,94).

Houve uma tendência, sem diferença estatística, de maior risco de hipoglicemias no grupo intensivo (0,7% no grupo liberal vs. 1,0% no grupo intensivo; RR 1,52 – 0,97 a 2,39; IC 95%), porém sem nenhum episódio de hipoglicemia grave e refratária. Também não houve aumento de mortalidade no desfecho de segurança em 90 dias (10,5% no grupo intensivo vs. 10,1% no grupo liberal; RR 1,04 – 0,92 a 1,17; IC 95%; p = 0,51).

Quanto aos desfechos secundários, houve menor risco de lesão renal (HR 0,84; 0,73 – 0,97) e necessidade de diálise no grupo de controle intensivo (HR 0,82; 0,68 – 0,98) além de menor elevação de marcadores de colestase (HR 0,86 para gama GT e 0,88 para fosfatase alcalina) apesar de não haver diferença quanto aos marcadores de lesão celular hepática. Os demais desfechos secundários analisados não tiveram diferença significativa entre os grupos.

Como esperado, o uso de insulina foi significativamente maior no grupo intensivo (98,8% vs. 45,9% no grupo liberal; HR 2,15). A média de glicemia atingida durante o dia foi de 115 no grupo intensivo vs. 145 no grupo liberal (diferença absoluta -28 mg/dL), enquanto a glicemia da manhã foi de 140 no grupo intensivo vs 107 no grupo liberal. A média de tempo de internação na UTI foi de 7 (+/- 13) nos grupos.

Ouça mais: Novidades no tratamento do diabetes: monitorização contínua da glicemia [podcast]

Conclusões sobre o controle glicêmico intensivo na UTI

Em indivíduos internados em UTI que não receberam nutrição parenteral precoce, o controle glicêmico intensivo não resultou em menor tempo de internação em UTI ou mortalidade, com uma tendência não estatística a maior incidência de hipoglicemias. A informação presente neste estudo é importante devido ao tamanho da amostra, capaz de detectar uma pequena diferença no impacto quanto ao desfecho proposto (apesar do N não ter sido calculado para detecção em diferença de mortalidade) e também pelo fato de selecionar pacientes mais próximos do perfil atual, que não são submetidos ao uso de nutrição parenteral precoce. Esse resultado reforça que alvos mais “liberais” de glicemia parecem trazem impacto negativo no desfecho dos pacientes internados em UTI.

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Autor

Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – Faculdade de Medicina de Botucatu

Referências bibliográficas:
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