A revista médica European Journal of Pediatrics publicou, no início deste ano, um artigo muito interessante, revisando e discutindo os principais mitos relacionados à constipação infantil.
O cólon atua em muitas funções relacionadas à saúde, sendo as três mais importantes: (1) armazenar a porção não digestível da comida, (2) absorver líquidos e eletrólitos (cerca de 90% do líquido que chega ao intestino grosso) e (3) alojar a maior parte do microbioma humano, prevenindo o desenvolvimento de doenças.
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Embora em um primeiro momento o distúrbio possa parecer pouco relevante no enorme contexto da saúde da criança, fica claro que a constipação na infância é causa de prejuízo de qualidade de vida e altos custos financeiros. Em Victoria (Austrália) por exemplo, foram identificados gastos que somam 5,5 milhões de dólares australianos relacionados à constipação, em decorrência da realização de exames, transporte e dias de trabalho perdidos (pais).
Por isso, os autores selecionaram diversos mitos e equívocos usuais sobre o assunto, sendo os principais:
Crianças saudáveis devem evacuar diariamente
O padrão de evacuação de crianças pode variar dependendo de sua idade e de diferenças interpessoais. Bebês classicamente têm padrões extremamente variáveis, podendo evacuar várias vezes ao dia ou ficar 6 a 7 dias sem evacuar. Estudos sobre o assunto mostraram que, embora a maioria das crianças evacue diariamente, cerca de 6% não possuem esse padrão, podendo, em alguns casos, evacuar menos de 3 vezes na semana mesmo na ausência de características de constipação.
Constipação em crianças é geralmente causada por doença do cólon
Cerca de 95% das crianças constipadas não apresentam causa orgânica subjacente, tratando-se de constipação funcional.
Alergia à proteína do leite de vaca (APLV) é causa de constipação em crianças
Apesar de ser um questionamento frequente, não há evidência definitiva de que a APLV contribua para casos de constipação simples ou que a dieta de exclusão de leite seja uma abordagem terapêutica eficaz.
Embora diversos estudos tenham focado nessa questão, a qualidade metodológica e heterogeneidade das definições utilizadas nesses trabalhos fazem com que as evidências sejam insuficientes para que se possa tirar conclusões sobre o assunto. Por isso, os guidelines atuais não recomendam dieta de restrição em crianças com constipação sem complicações, sendo a exclusão do leite por 2-4 semanas seguida de reintrodução dele uma opção apenas nos casos de constipação refratária ou quando associada a outras manifestações relacionadas a APLV, como a proctite.
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Radiografia de abdome auxilia no diagnóstico de constipação
Uma revisão sistemática sobre o assunto demonstrou que a radiografia simples de abdome tem uma sensibilidade de 60-80% e uma especificidade de 43-99% no diagnóstico de retenção colônica de fezes. A grande variação está relacionada a questões como a expertise do profissional avaliador e a técnica utilizada para realizar o exame.
De qualquer forma, embora os médicos tenham relatado se sentirem mais confiantes no diagnóstico após o exame, o mesmo não mudou a conduta pretendida na grande maioria dos casos, sendo questionado o custo x benefício de um exame que envolve irradiação e que tem baixa sensibilidade, especificidade e confiabilidade e cujo resultado tende a não modificar a conduta.
Exames laboratoriais auxiliam na identificação da etiologia da constipação
Como citado, cerca de 95% das constipações têm causa funcional. Embora seja da prática clínica de muitos profissionais, a solicitação de exames para investigação da etiologia de um quadro de constipação como, por exemplo, função tireoidiana, pesquisa para doença celíaca e dosagem de eletrólitos, avalia diagnósticos de exclusão que devem ser investigados apenas na presença de outras alterações clínicas que sugiram esses diagnósticos ou na constipação que não responde ao tratamento usual.
Suplementação de fibras e aumento da ingesta hídrica são medidas terapêuticas efetivas
Embora um aporte inadequado de fibras seja considerado o culpado em muitos casos de constipação, é importante observar que crianças sem constipação frequentemente também apresentam consumo de fibras abaixo das recomendações diárias. Embora estudos com adultos tenham demonstrado melhora da constipação com uso de doses superiores à máxima recomendada (10 g/dia), esse desfecho não foi observado em crianças.
Também não há evidência de que quantidades suprafisiológicas de água tragam impacto positivo na constipação infantil. Diante disso, as sociedades médicas implicadas (ESPGHAN – European Society of Pediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition e NASPGHAN – North American Society of Pediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition) se limitam a recomendar o consumo diário adequado de fibras e água.
Uso prolongado de laxativos está associado a complicações e rebote
O uso em longo prazo de medicamentos laxativos está envolvido em diversos mitos. No entanto, não há evidências de que esta abordagem terapêutica traga prejuízos no que tange a dano neuronal ou muscular intestinal. Também não há descrição de aumento do risco de câncer colorretal ou de aquisição de tolerância a este grupo de fármacos.
Outra preocupação é alteração hidroeletrolítica, o que também não tem embasamento científico. Em relação a rebote após suspensão do medicamento, a literatura sugere que o tratamento efetivo seguido de desmame gradual da medicação pelo menos um mês após a resolução leva a uma melhora sustentada do quadro na maioria das vezes. Nos casos em que há rebote, está indicada investigação complementar por constipação refratária.
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Conclusões
Muitos mitos cercam a constipação infantil, o que leva a diagnósticos e manejo inadequados com potencial prejuízo de qualidade de vida e custos em saúde.
Comentários
De fato, a constipação intestinal é uma distúrbio comum em bebês e crianças e que gera grande ansiedade na família e prejuízo na qualidade de vida dos pacientes pediátricos, por vezes trazendo impacto psicossocial. Essa revisão é de extrema importância, pois grande parte dos profissionais que prestam atendimento a essas crianças não têm clareza sobre vários dos pontos citados, o que gera ainda mais impacto para essas famílias, com a solicitação de exames desnecessários e orientação de tratamentos ineficazes.
Antes de qualquer prescrição, é função do pediatra orientar adequadamente sobre as questões relacionadas à saúde infantil. Isso aumenta o vínculo de confiança entre os cuidadores e o médico ao mesmo tempo que reduz a ansiedade da família, melhorando adesão a eventuais tratamentos e a compreensão sobre saúde e doença.
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Autor
Graduada em Medicina pela Universidade Estácio de Sá (UNESA) • Residência médica em Pediatria pelo Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ) • Residência médica em Alergia e Imunologia Pediátrica no Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ) • Mestra em Saúde Materno-Infantil (IFF/FIOCRUZ) • Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) • Membro do grupo de análise de sequenciamento genético de doenças raras (IFF/FIOCRUZ) • Preceptora da residência médica de Alergia e Imunologia Infantil do Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ) • Consultora de amamentação • Instagram: @barbarareis.pediatra
- Rajindrajith S, Devanarayana NM, Thapar N, Benninga MA. Myths and misconceptions about childhood constipation [published online ahead of print, 2023 Jan 23]. Eur J Pediatr. 2023;10.1007/s00431-023-04821-8. DOI: 10.1007/s00431-023-04821-8