A compreensão do microbioma intestinal (MI) infantil emergiu como um campo de pesquisa fundamental que transcende as fronteiras da biologia e da saúde humana. O MI, uma comunidade complexa de micro-organismos que habita o trato gastrointestinal (TGI), desempenha um papel crucial no desenvolvimento e na manutenção da saúde das crianças desde os primeiros momentos de vida. Nos primeiros mil dias, desde a concepção até os dois anos de idade, o MI passa por um processo dinâmico de formação e estabilização. Esse período crítico coincide com fases-chave do desenvolvimento do sistema imunológico, do sistema nervoso central (SNC) e do metabolismo. Portanto, o estabelecimento de uma microbiota saudável durante essa janela temporal é cada vez mais reconhecido como um componente essencial para a saúde da criança no curto e no longo prazo1,2. A seguir, abordamos esses aspectos do MI, seu papel biológico e nas doenças infantis.
Microbioma e sua relevância nos primeiros mil dias
Microbioma e o desenvolvimento do SNC
A maioria dos microrganismos reside no TGI dos seres humanos e impacta uma ampla gama de atividades fisiológicas ou patológicas do hospedeiro. O conceito de “eixo intestino-cérebro” inclui complicada interação direta e indireta da microbiota intestinal e seus metabólitos com diferentes componentes celulares no SNC através de sinalização imunológica. Dessa forma, a interrupção da homeostase na microbiota intestinal pode levar a diversas alterações no SNC1,3.
Uma vez que a microbiota influencia o SNC através de várias vias imunológicas (interferon tipo I, inflamassoma e fator nuclear kappa B), é razoável considerar a sua contribuição na progressão de vários distúrbios neurológicos³. Por exemplo, um estudo de caso-controle comparando crianças chinesas com transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) com controles saudáveis mostrou que aquelas com TDAH têm níveis mais baixos de Faecalibacterium e Veillonellaceae, enquanto Odoribacter e Enterococcus estavam significativamente aumentados4.
Microbioma e o crescimento corporal
Evidências atuais sugerem que uma série de bactérias estão associadas à desnutrição ou ao crescimento saudável durante os primeiros mil dias. Primeiramente, durante a gestação, uma microbiota vaginal com baixa diversidade e rica em Lactobacillus está associada ao nascimento a termo e ao peso normal ao nascer em ambientes de alta renda. Por outro lado, uma microbiota vaginal mais diversificada, rica em Prevotella spp., Gemella spp. e Corynebacterium, está associada à redução do escore Z de comprimento para a idade no recém-nascido (RN). Uma maior quantidade de Bifidobacterium longum e Streptococcus thermophilus estão associadas a um crescimento saudável nos primeiros seis meses de idade (essas bactérias são menos prevalentes na desnutrição no início da vida). Durante esse período, a amamentação está associada a maiores quantidades de Bacteroides e Bifidobacterium. Posteriormente, ainda na infância, Akkermansia muciniphila superior, Faecalibacterium prausnitzii, Lactobacillus, Methanobrevibacter smithii e anaeróbios obrigatórios estão associados ao crescimento saudável. Já o Staphylococcus aureus, Escherichia coli e outras espécies estão associadas à desnutrição aguda grave5.
A desnutrição é influenciada por infecções, transporte de patógenos e impacto metabólico de comunidades microbianas intestinais comensais “disbióticas” em bebês durante os primeiros mil dias. A formação tardia ou imatura da microbiota intestinal está subjacente à desnutrição aguda grave em crianças, pois a microbiota intestinal afeta o eixo somatotrópico através da regulação do fator de crescimento semelhante à insulina tipo 1 (IGF1) e da produção do hormônio do crescimento (GH), afetando, dessa forma, o crescimento5.
Microbioma e o desenvolvimento do sistema imune
Atualmente, existem evidências crescentes de que o sistema imunológico infantil e o MI estão intimamente conectados, interagem e amadurecem juntos. Ademais, os desequilíbrios no MI e as perturbações no sistema imunitário também podem estar causalmente ligados ao desenvolvimento e progressão de doenças6, como alergias e asma¹. Recentemente, uma revisão sistemática com metanálise mostrou que o Lactobacillus rhamnosus G (LGG) pode ter evidências de qualidade moderada para promover a tolerância oral em crianças com alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e pode facilitar a recuperação dos sintomas intestinais7.
Microbioma e o desenvolvimento da função pulmonar
A disbiose no intestino foi recentemente associada a alterações nas respostas imunológicas e ao desenvolvimento de doenças pulmonares. Nos últimos anos, doenças pulmonares crônicas, como a fibrose cística e a asma, têm sido investigadas para avaliar o papel potencial da disbiose intestinal no seu desenvolvimento, pois as exacerbações de doenças intestinais e pulmonares crônicas compartilham características conceituais importantes com a desregulação do ecossistema microbiano intestinal8.
Microbioma e distúrbios gastrointestinais funcionais
O papel da microbiota intestinal tem sido foco de intensa pesquisa durante as últimas décadas, resultando em estudos que indicam diferenças entre indivíduos saudáveis e pacientes que sofrem de doenças não transmissíveis. Diversos distúrbios gastrointestinais crônicos, como distúrbios gastrointestinais funcionais (DGIF), cólica infantil, doença inflamatória intestinal (DII) e doença celíaca, têm sido associados a alterações na composição da microbiota intestinal9.
Os probióticos são uma das modalidades de tratamento mais comumente utilizadas9 e estudadas para o manejo da DGFI. Recentemente, a European Society for Paediatric Gastroenterology Hepatology and Nutrition (ESPGHAN) publicou as seguintes recomendações com relação ao uso de probióticos em DGFI:
- Os profissionais de saúde podem recomendar Lactobacillus rhamnosus GG (em uma dose de 109 UFC a 3×109 UFC duas vezes ao dia) para a redução da frequência e intensidade da dor em crianças com síndrome do intestino irritável (certeza de evidência: moderada; grau de recomendação: fraco)10.
- Os profissionais de saúde podem recomendar Lactobacillus reuteri DSM 17938 [em uma dose de 108 UFC (unidades formadoras de colônia) a 2×108 UFC/dia] para redução da intensidade da dor em crianças com distúrbios de dor abdominal funcional (certeza de evidência: moderada; grau de recomendação: fraco);
Com relação às cólicas infantis, Chen e colaboradores demonstraram que a administração oral diária de Bifidobacterium longum CECT7894 (KABP042) e Pediococcus pentosaceus CECT8330 (KABP041) foi eficaz para reduzir o tempo de choro em bebês devido à cólica infantil e para melhorar a consistência das fezes nesses pacientes¹¹. Além disso, Astó e colaboradores também forneceram evidências das propriedades probióticas e sinérgicas das cepas Bifidobacterium longum KABP042 e Pediococcus pentosaceus KABP041, e de seu potencial para tratar DGIF pediátricos¹².
CONCLUSÃO
O MI é um ecossistema complexo de microrganismos que reside no TGI, desempenhando um papel crucial na saúde humana. A pesquisa científica recente tem revelado a importância do MI na regulação do sistema imunológico, no metabolismo de nutrientes e até mesmo na função cerebral. Esse conhecimento emergente tem despertado interesse no uso de probióticos como uma abordagem promissora para promover a saúde intestinal e, por extensão, a saúde geral. De fato, os probióticos mostram grande potencial terapêutico, e é fundamental que as pesquisas continuem nesta área com o objetivo de identificar aplicações específicas e abordar questões pendentes.
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Autor
Graduada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Valença ⦁ Residência médica em Pediatria pelo Hospital Federal Cardoso Fontes ⦁ Residência médica em Medicina Intensiva Pediátrica pelo Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro. Mestra em Saúde Materno-Infantil (UFF) ⦁ Doutora em Medicina (UERJ) ⦁ Aperfeiçoamento em neurointensivismo (IDOR) ⦁ Médica da Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) do Hospital Universitário Pedro Ernesto (HUPE) da UERJ ⦁ Professora adjunta de pediatria do curso de Medicina da Fundação Técnico-Educacional Souza Marques ⦁ Membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Pediatria do IDOR no Rio de Janeiro ⦁ Acompanhou as UTI Pediátrica e Cardíaca do Hospital for Sick Children (Sick Kids) em Toronto, Canadá, supervisionada pelo Dr. Peter Cox ⦁ Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) ⦁ Membro do comitê de sedação, analgesia e delirium da AMIB e da Sociedade Latino-Americana de Cuidados Intensivos Pediátricos (SLACIP) ⦁ Membro da diretoria da American Delirium Society (ADS) ⦁ Coordenadora e cofundadora do Latin American Delirium Special Interest Group (LADIG) ⦁ Membro de apoio da Society for Pediatric Sedation (SPS) ⦁ Consultora de sono infantil e de amamentação ⦁ Instagram: @draroberta_pediatra
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