Glucagon na fisiologia de diabetes, obesidade e esteatose hepática

O diabetes mellitus é uma das condições crônicas mais prevalentes e importantes da medicina atualmente. Felizmente, a última década vem sendo marcada por uma constante evolução no seu tratamento, tanto pela descoberta e evolução do uso de tecnologias no diabetes mellitus tipo 1 (DM1) como pela descoberta de novos agentes farmacológicos para o tratamento do diabetes tipo 2 (DM2). 

Este ano foi publicado no New England Journal of Medicine (NEJM) um estudo de fase 2 sobre a retatrutida, um agonista triplo GLP-1, GIP e Glucagon, que demonstrou o maior potencial já visto para um estudo dessa fase em perda de peso, chegando a uma média de -24% de perda de peso, com maior impacto em mulheres e naqueles com IMC maior que 35 kg/m².  

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Ainda, um subestudo pré-especificado (ainda não publicado) apresentado no congresso da American Diabetes Association (ADA) 2023, mostrou que indivíduos com doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD) submetidos ao uso da retatrutida tiveram  uma melhora muito significativa na esteatose hepática, chegando a reduzi-la em mais que 80% nos grupos com diferentes doses em apenas 24 semanas, levando a NAFLD – ou seja, reduzindo o conteúdo hepático de gordura a menos de 5% – em 93% dos pacientes com a dose de 12mg em 48 semanas. 

Esses resultados, ainda que de certa forma preliminares por se tratar de um estudo de fase 2, são animadores e nos fazem repensar o papel de um “primo” esquecido da insulina, o glucagon.  

O glucagon é um hormônio secretado pelas células alfa pancreáticas e normalmente nos lembramos dele como sendo o contrarregulador da insulina, porém uma revisão publicada na revista Nature Endocrine Reviews em junho/2023 trouxe detalhes interessantes sobre as ações fisiológicas do glucagon, seu papel no diabetes, obesidade e NAFLD e potenciais terapêuticos futuros. 

glucagon

O glucagon: o que é?  

O glucagon é um hormônio derivado da molécula do pró-glucagon. O pró-glucagon pode sofrer clivagem pelas pró-convertases 1 e 2 (PC1 e PC2). Normalmente, as células alfa apresentam maior atividade da PC2, dando origem ao glucagon, ao GRPP e ao IP1, uma espécie de “peptídeo C” do glucagon, enquanto nas células L intestinais predomina a atividade da PC1, dando origem à glicentina (que mais tarde é convertida em oxintomodulina e GRPP), GLP-1, GLP-2 e IP2.

Portanto, vale lembrar que o GLP-1 e o glucagon têm origem no mesmo pró-hormônio. A similaridade dessas moléculas torna difícil a realização de sua dosagem na prática, sendo que a maioria dos métodos carece de boa sensibilidade e especificidade. 

O glucagon é secretado pela célula alfa pancreática por meio de estímulos diferentes:  

  • Queda dos níveis de glicose; 
  • Elevação sérica de aminoácidos (glucagonotrópicos). O glucagon, por sua vez, estimula a captação hepática desses aminoácidos e leva a síntese de ureia. Esse fenômeno é chamado de “eixo fígado-célula alfa”; 
  • Regulação parácrina. O glucagon é inibido pela insulina, amilina, zinco e pela somatostatina (produzida nas células delta); 
  • Hormônios incretínicos. O GLP-1 inibe o glucagon, enquanto o GIP pode estimular a secreção de glucagon em estados de hipoglicemia e ao mesmo tempo estimular a secreção de insulina durante estados de hiperglicemia. 

Seu papel fisiológico vai além de ser um hormônio contrarregulador. Os receptores de glucagon (GCCR) são encontrados majoritariamente no fígado, porém também estão presentes no trato gastrointestinal, rins, coração, adipócitos, SNC, retina e adrenais, por exemplo. De forma didática, suas ações incluem:  

1. Ações hepáticas:

  • Aumento da secreção hepática de glicose por meio de glicogenólise e gliconeogênese, além de inibir a glicólise e glicogênese (ação como hormônio “contrarregulador”, protegendo o organismo contra a hipoglicemia); 
  • Aumento da síntese de ureia (como mencionado anteriormente, o glucagon estimula a degradação de aminoácidos (eixo fígado-célula alfa); 
  • Aumento da Beta oxidação lipídica hepática (atentar para essa ação, pois como veremos, é um dos mecanismos potenciais para o tratamento da NAFLD); 
  • Redução da síntese lipídica hepática.

2. Redução de ingesta calórica (ação no SNC por vias não amplamente conhecidas; é possível que o mecanismo envolva vias aferentes vagais e um “eixo fígado-vago-hipotálamo”) 

3. Aumento da frequência cardíaca; 

4. Redução do esvaziamento gástrico e peristalse no TGI; 

5. Aumento da taxa de filtração glomerular; 

6. Aumento do gasto energético basal no tecido adiposo marrom – curiosamente, o receptor de glucagon GCCR não está presente no tecido adiposo branco humano e não há efeito lipolítico em estudos clínicos em sua concentração fisiológica. 

Uma observação importante: a insulina contrapõe todo o efeito do glucagon no metabolismo lipídico hepático, e a relação insulina/glucagon parece determinar de fato o seu resultado final. 

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Crosstalk entre células alfa e células beta 

O microambiente da ilhota pancreática é fundamental para o metabolismo glicêmico. Cada vez mais se valoriza o papel da célula alfa tanto na sinalização parácrina como para proliferação e sobrevida das células beta.  

O glucagon estimula a secreção de insulina, enquanto esta inibe a secreção daquele. Temos ainda um terceiro componente na equação: as células delta, que secretam somatostatina, que por sua vez também inibe a secreção de glucagon.

Glucagon e diabetes 

O diabetes é uma condição onde existe uma elevação na concentração sérica de glucagon, ou hiperglucagonemia. Em combinação com a hipoinsulinemia relativa à resistência insulínica, resulta em redução do clearance de glicose e aumento da produção endógena de glicose.  

Após a ingestão de carboidratos por via oral, pessoas com DM respondem com um inapropriado incremento na secreção de glucagon, seguido por uma redução. Os mecanismos que levam a essa alteração ainda são discutidos, mas é considerado que o GIP possa contribuir, além da secreção intestinal de glucagon ou ainda, pela alteração na razão células alfa/beta devido maior apoptose de células beta, que são mais suscetíveis ao estresse celular. 

Glucagon na obesidade e doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD) 

A hiperglucagonemia também acontece em indivíduos com obesidade, mesmo com tolerância à glicose normal. O principal fator predisponente a isso pode ser a própria esteatose hepática, que pode levar a uma resistência hepática ao glucagon. 

De acordo com tal hipótese, o acúmulo de gordura hepática leva à resistência da ação do glucagon na beta oxidação lipídica, à ausência de inibição de síntese lipídica e interfere também no eixo fígado-célula alfa, impedindo a ação do glucagon na metabolização de aminoácidos.  

Com isso, há aumento dos aminoácidos circulantes, que por sua vez estimulam ainda mais a secreção de glucagon. É importante destacar que a via glicêmica não sofre resistência e o glucagon continua a promover gliconeogênese e glicogenólise. 

Discussão 

Os autores da revisão ainda discutem um aspecto não elucidado na literatura: a elevação do glucagon faz parte do processo fisiopatológico dessas doenças metabólicas ou seriam uma adaptação benéfica?  

Apesar de não haver uma resposta clara com base em estudos fisiológicos, uma pista é que indivíduos com DM2 apresentam aumento da relação células alfa/beta, sendo que as células alfa são importantes tanto para preservação das betas como por estimular mais ainda a secreção de insulina, tanto pelo glucagon como pela secreção de GLP-1 (em indivíduos com DM, há maior expressão da PC1 nas células alfa). Portanto, no momento, a hiperglucagonemia parece ser algo benéfico e adaptativo. 

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Papéis terapêuticos 

Por fim, seria melhor então que tivéssemos antagonistas do glucagon ou agonistas? 

Antagonistas do glucagon foram estudados para o tratamento do diabetes, tanto DM1 como DM2. Apesar de um bom potencial para controle de hiperglicemia, todas as moléculas testadas até o momento tiveram efeitos adversos significativos como elevação de enzimas hepáticas, aumento do risco de esteatose hepática, piora de lípides, elevação da pressão arterial e risco de hiperplasia de células alfa, o que os torna, portanto, não candidatos ao tratamento de condições metabólicas como o diabetes. 

Apesar do glucagon de forma isolada levar a maior produção hepática de glicose, a ideia de utilizar um agonista do receptor de glucagon em associação com agonistas de GLP-1 ou agonistas duais GIP e GLP-1 se baseiam na ideia do sinergismo do GLP-1 e glucagon para estimular a produção de insulina e também no controle central do apetite, bem como na redução do esvaziamento gástrico. Além disso, o glucagon tem o potencial de aumentar a beta oxidação lipídica hepática, promovendo melhora da esteatose.

Tais teorias foram vistas na prática no estudo de fase 2 da retatrutida, cujo potencial para o tratamento do diabetes foi gigantesco, levando a redução média de Hba1c em – 2,0%, mas com potencial ainda maior considerando o tratamento da obesidade e da esteatose hepática. Aguardemos os estudos de fase 3. 

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Autor

Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – Faculdade de Medicina de Botucatu

Referências bibliográficas:
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  • Hædersdal S, Andersen A, Knop FK, Vilsbøll T. Revisiting the role of glucagon in health, diabetes mellitus and other metabolic diseases. Nat Rev Endocrinol. 2023 Jun;19(6):321-335. DOI: 10.1038/s41574-023-00817-4. Epub 2023 Mar 17. PMID: 36932176.

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  • Rosenstock J, Frias J, Jastreboff AM, Du Y, Lou J, Gurbuz S, Thomas MK, Hartman ML, Haupt A, Milicevic Z, Coskun T. Retatrutide, a GIP, GLP-1 and glucagon receptor agonist, for people with type 2 diabetes: a randomised, double-blind, placebo and active-controlled, parallel-group, phase 2 trial conducted in the USA. Lancet. 2023 Aug 12;402(10401):529-544. DOI: 10.1016/S0140-6736(23)01053-X. Epub 2023 Jun 26. PMID: 37385280. 

     

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