Espondilite anquilosante: o que devemos saber?

A espondilite anquilosante (EA) é uma doença que faz parte do grupo das espondiloartrites (SpA), que engloba diferentes artropatias inflamatórias que possuem em comum uma predileção pelo acometimento axial e de ênteses, positividade para o HLA-B27 e negatividade para os autoanticorpos (fator reumatoide e ACPA).   

As principais características clínica que definem a espondilite anquilosante são o acometimento axial (coluna vertebral e articulações rizomélicas) e o potencial de evoluir com anquilose das articulações, levando à perda de funcionalidade e piora da qualidade de vida dos pacientes acometidos.  

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espondilite anquilosante

Epidemiologia  

Estima-se que a sua prevalência geral é de cerca de 0,5-1,0% da população mundial. Ocorre predominantemente em caucasianos, com pico de incidência entre os 20-40 anos de idade. A relação entre homens e mulheres acometidos é de 3-4:1.  

Existem diferenças entre os sexos, com pior prognóstico em pacientes do sexo masculino, devido ao maior risco de progressão radiográfica e evolução com EA. No sexo feminino, o início da doença é mais precoce (cerca de um a dois anos) e o diagnóstico mais tardio (cerca de um a dois anos). Apesar disso, a chance de progressão radiográfica com anquilose é menor nas mulheres (ocorre em cerca de 20% dos casos). Existe uma maior probabilidade de acometimento cervical isolado nas mulheres, o que pode dificultar o diagnóstico.  

Uma característica que merece destaque é a forte associação com a presença do HLA-B27. Em estudos com pacientes portadores de espondilite anquilosante, a positividade para o HLA-B27 chega a 74-89%. No Brasil, essa positividade está estimada em > 90-95%. Além disso, pacientes HLA-B27 positivos apresentam uma doença mais agressiva, com início mais precoce, mais atividade de doença e maior necessidade do uso de biológicos. 

Fisiopatologia  

Diversas hipóteses foram formuladas para explicar o papel patogênico do HLA-B27 nas SpA. As mais aceitas são a teoria do peptídeo artritogênico, a dimerização não canônica do HLA-B27 e presença de misfolding do HLA-B27. Essas alterações seriam capazes de ativar a resposta imune inata e provocar o processo inflamatório nas SpA.  

O processo patológico primário nas SpA ocorre no complexo entesossinovial, que é o ponto de inserção dos tendões, ligamentos e cápsula articular à superfície óssea. Em um paciente geneticamente predisposto, o estresse mecânico da êntese ou o estresse infeccioso pela disbiose intestinal pode ativar a resposta imune inata, que possui maior participação na fisiopatologia da SpA do que a adaptativa. 

Do ponto de vista molecular, há produção de prostaglandina E2 (PGE2), que leva à vasodilatação e recrutamento de neutrófilos, levando à ativação da via IL-23/IL-12/IL-17. A produção da IL-23 por macrófagos estimula os linfócitos T gama-delta e célula linfoides inatas residentes nas ênteses, que por sua vez produzirão IL-17A e TNF. Isso estimula um maior recrutamento de neutrófilos, que libera proteases e causa dano tecidual.  

A participação de fenômenos osteoimunológicos permitem que haja uma deposição anormal de cálcio nas ênteses, levando à neoformação óssea e consequente anquilose nos casos avançados.  

Quadro clínico  

A EA é o protótipo das SpA axiais. Nela, ocorre acometimento das articulações sacroilíacas e da coluna vertebral, que se expressa clinicamente como uma lombalgia de características inflamatórias. Os pacientes se queixam de dor lombar crônica (>3 meses) que piora com o repouso e alivia com o movimento, principalmente na segunda metade do sono noturno, associada à dor glútea alternante e rigidez matinal prolongada (>60 minutos).

Por definição, na espondilite anquilosante, temos limitação da movimentação em diferentes planos e níveis da coluna, devido à anquilose de sua estrutura. Cerca de 50% dos pacientes também apresentam acometimento de articulações rizomélicas, em especial as coxofemorais, que podem ser causa de pseudolombalgia. Manifestações periféricas podem estar presentes, geralmente como uma oligoartrite assimétrica de grandes articulações dos membros inferiores.

Entesites são frequentes e podem acometer, principalmente, calcâneo fáscia plantar e ênteses da bacia. No exame físico, os testes para estresse da sacroilíacas, como Patrick, Erichsen, Volkmann, Lewis, Gaenslen e Yeoman, são positivos, além de o paciente apresentar dor à palpação das ênteses. Avaliação das limitações do arco de movimento e dano estrutural podem ser feitas utilizando a distância occipto-parede ou trágus-parede, rotação cervical, expansibilidade torácica, inclinação lateral do tórax e Schober (clássico e modificado).

Outras manifestações extra-articulares mais raras podem estar presentes, como fibrose pulmonar apical, insuficiência aórtica, nefropatia por IgA e prostatismo. Os sintomas da espondiloartrite axial não radiográfica (considerada por alguns autores uma forma inicial da EA) são semelhantes aos da espondilite anquilosante, exceto pela ausência de anquilose.  

O acometimento ocular da espondilite anquilosante se expressa mais frequentemente através de uma uveíte anterior aguda, unilateral, recorrente e sintomática, geralmente com bom prognóstico visual (não sinequiante em sua maioria). As manifestações intestinais se assemelham às doenças inflamatórias intestinais, podendo se manifestar também como colite microscópica (linfocítica ou colágena). As lesões de pele, quando presentes, são parecidas com a da psoríase cutânea.   

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Exames complementares  

Os exames complementares na espondilite anquilosante envolvem exames laboratoriais gerais (que demonstram elevação de provas inflamatórias, como VHS e PCR – este último apresenta correlação com progressão radiográfica), pesquisa do HLA-B27 (positivo na grande maioria dos casos com acometimento axial) e exames de imagem.  

A radiografia de sacroilíacas é o primeiro exame a ser solicitado na avaliação de pacientes com espondilite anquilosante (sensibilidade 84% e especificidade 75%). No entanto, em casos com alta probabilidade pré-teste, o fato de a radiografia estar normal não exclui o diagnóstico, visto que a alteração radiográfica pode levar de seis a oito anos para se instalar.  

Atualmente a ressonância magnética é o padrão-ouro na avaliação, permitindo a identificação de alterações agudas que sugerem inflamação e atividade de doença, como edema medular ósseo, sinovite, entesite e capsulite, e alterações estruturais crônicas, como erosões, esclerose, lipossubstituição, backfill e anquilose.  

A ultrassonografia pode ser útil na avaliação das artrites periféricas e entesites, permitindo também a avaliação da atividade de doença.  

A TC de sacroilíacas perdeu espaço para a RM e atualmente é pouco utilizada na prática diária.  

Classificação e diagnóstico  

O diagnóstico é clínico e endossado pelos critérios de classificação. Atualmente, os critérios mais utilizados são os do ASAS para SpA axial (grupo no qual a EA se insere) e os critérios modificados de Nova Iorque.  

Para a classificação como SpA axial, o paciente (com dor lombar com duração de pelo menos 3 meses e início antes dos 45 anos) pode seguir o braço de imagem (sacroilíte pela imagem + 1 ou mais características das SpA) ou o braço clínico (positividade para o HLA-B27 + 2 ou mais características das SpA). Características das SpA: dor lombar inflamatória, artrite, entesite, uveíte, dactilite, psoríase, Crohn ou colite ulcerativa, boa resposta aos AINEs, história familiar para SpA, HLA-B27 positivo e PCR elevada.  

Os critérios de Nova Iorque modificados permitem a classificação do paciente como espondilite anquilosante, na presença dor inflamatória > três meses, limitação da expansibilidade torácica e limitação da mobilidade da coluna lombar nos planos sagital e frontal, associados a alterações na radiografia de sacroilíacas (grau 2 bilateral ou grau 3 ou 4 unilateral).  

Diagnóstico diferencial  

O diagnóstico diferencial é amplo e envolve diversos grupos de doenças. Doenças infecciosas, como tuberculose, e doenças neoplásicas, como linfoma, podem simular quadros de SpA, devido à dor lombar inflamatória. Nesses casos, a RM é de extrema importância e permite a avalição do grau de acometimento de partes moles, atípico para SpA e sugestivo de causas infecciosas e neoplásicas. 

Quadro periféricos fazem diagnóstico diferencial com outras artropatias inflamatórias, em especial à artrite reumatoide.  

Outros diagnósticos diferenciais são: osteíte condensante, doença por depósito de pirofosfato de cálcio, sacroilíaca acessória, osteoartrite, doença de Behçet, entre outras.  

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Tratamento  

Os objetivos gerais são a remissão, se possível, ou baixa atividade de doença, além da reabilitação, recuperação funcional e melhora da qualidade de vida.  

Os pacientes devem ser estimulados a adotar hábitos de vida saudáveis, interromper o tabagismo, iniciar o processo de reabilitação precocemente no curso da doença (incluindo medidas de educação, proteção articular, conservação de energia, alongamentos e exercícios físicos de fortalecimento, alongamento e aeróbicos). É importante também fazer a avaliação de tratamento da osteoporose intercorrente e o controle dos fatores de risco cardiovasculares, uma vez que esses pacientes apresentam risco aumentado de doenças cardiovasculares.  

O tratamento farmacológico de primeira linha das manifestações axiais e da entesite, predominantes na EA, são os AINEs, que devem ser prescritos em dose cheia, por pelo menos um mês. Após esse período, se não houver resposta, pode ser realizada a troca por outro AINE, com uma duração total dessa estratégia de até três meses. Caso o paciente apresente um BASDAI >4 ou ASDAS >2,1 após o tratamento com AINEs, está indicado o uso de biológicos. Normalmente, os anti-TNF são os mais frequentemente prescritos neste momento (apesar de o uso de anti-IL-17 também ser possível).   

Caso o paciente apresente doença inflamatória intestinal ou uveíte associadas, devemos dar preferência para os anticorpos monoclonais. Se ainda assim o paciente se mantiver com BASDAI >4 ou ASDAS >2,1, está indicada a troca para outro anti-TNF ou para o anti-IL-17 (este último deve ser evitado em pacientes com doença inflamatória intestinal em atividade).

Recentemente, os inibidores da JAK demonstraram sua eficácia no tratamento da espondilite anquilosante. MMCDs sintéticos convencionais e corticoterapia não devem ser prescritos nesse contexto. O uso de corticoide deve ser restrito para infiltrações articulares ou periarticulares (evitar em tendão de Aquiles), caso indicadas.  

O tratamento da uveíte é feita com terapia corticoide ou anti-inflamatórios tópicos durante as crises. Tratamento sistêmico está indicado apenas para casos recorrentes (três a cinco crises por ano) ou para casos sinequiantes com risco de sequela visual.  

Referências bibliográficas:
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