Esclerose sistêmica: o que o clínico precisa saber?

A esclerose sistêmica (ES) é uma doença autoimune, de etiologia desconhecida, que cursa com vasculopatia associada à disfunção endotelial e à fibrose multiorgânica. Possui apresentação clínica multissistêmica e heterogênea, com predileção pelo acometimento da pele, sistema musculoesquelético, coração, rins, pulmões e trato gastrointestinal. 

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esclerose sistêmica

Epidemiologia

Trata-se de uma doença rara, com uma incidência estimada em entre 0,6 a 19 casos por 1.000.000 de habitantes-ano. A sua prevalência é maior no sexo feminino, com uma proporção de 4-6 mulheres para cada homem. Apesar disso, dados do EUSTAR sugerem que homens acometidos pela doença têm maior probabilidade de apresentar formas difusas, uma maior frequência de úlceras digitais, hipertensão arterial pulmonar, insuficiência cardíaca e maior risco de morte, denotando uma doença mais grave. 

A ES apresenta distribuição global e não há predominância em determina etnia. No entanto, os afrodescendentes apresentam uma maior probabilidade de desenvolver formas difusas graves da doença, com maior positividade para o anticorpo anti-Scl70 e menor positividade para anticentrômero, maior comprometimento pulmonar e maior risco de morte. 

Além disso, poliautoimunidade é frequente na esclerose sistêmica, acometendo cerca de 25% dos pacientes. Desse modo, é comum a presença de síndromes de sobreposição, em especial com as miopatias autoimunes sistêmicas. 

Etiopatogênese e fisiopatologia

A etiopatogenia da ES é complexa e multifatorial. Fatores genéticos, constitucionais, hormonais e ambientais parecem estar envolvidos. 

A interação entre a predisposição genética e os fatores ambientais e hormonais geram uma desregulação do sistema imunológico, com perda da tolerância e seleção de linfócitos B e T autorreativos, capazes de provocar uma resposta imunológica como antígenos próprios. Na fisiopatologia da ES, além da autoimunidade, outros dois fenômenos são bastante característicos: a vasculopatia com dano endotelial e a fibrose orgânica decorrente da síntese excessiva de matriz extracelular com deposição de colágeno. 

 O dano microvascular crônico e ativação das células endoteliais provavelmente são os eventos fisiopatogênicos primários da ES. O dano vascular progressivo leva à ativação plaquetária, redução na densidade de capilares e espessamento da íntima e da média, causando estenose vascular (endarterite proliferativa). Nesse processo há aumento na expressão de endotelina-1 (um potente vasoconstritor), moléculas de adesão (VCAM1, ICAM e E-selectina) e CTGF (connective tisse growth factor), além da liberação de diversas citocinas, como TGFß, PDGF, IL-1, IL-6 e outros fatores profibróticos. 

No processo de fibrose, dois elementos celulares possuem destaque, os fibroblastos/miofibroblastos e os macrófagos M2. O TGFß é a principal mediador envolvido no processo de fibrose e, em conjunto com a endoelina-1 e a angiotensina II, estimula a secreção do CTGF, que amplifica a resposta fibrótica do TGFß. O PDGF, liberado pelas plaquetas, macrófagos, células endoteliais e fibroblastos, também possui papel importante na fibrose. O resultado dessa interação é a deposição de colágeno na matriz extracelular, levando a várias manifestações da doença. 

As manifestações clínicas da ES são bastante heterogêneas. Apesar disso, o fenômeno de Raynaud (FRy) é a primeira manifestação da doença na imensa maioria dos casos. Ele está presente em >95% dos casos e normalmente ele surge meses a anos antes da primeira manifestação não Raynaud. Na ES, o fenômeno de Raynaud é potencialmente grave, com risco de isquemia, úlceras, pitting digital e reabsorção de falanges distais. Eventualmente pode complicar com necrose e necessidade de amputação. As crises de vasoespasmo podem ser precipitadas pelo frio. 

Do ponto de vista clínico, podemos identificar duas formas principais de ES: a forma cutânea limitada e a forma cutânea difusa. Na primeira, o espessamento cutâneo é restrito às extremidades dos membros (distais aos cotovelos e joelhos) e à face. Essa forma é tipicamente associada à presença de anticorpos anticêntromero e hipertensão pulmonar é uma manifestação temida.

Já na segunda, o acometimento cutâneo ocorre em todo o corpo, incluindo tórax, abdome e regiões mais proximais dos membros. Essa forma é associada ao anti-Scl70 e evolui de forma mais agressiva, com maior risco de doença intersticial pulmonar e acometimentos cardíaco e renal (crise renal esclerodérmica). Algumas formas de escleroses sistêmica não se encaixam nessa classificação, como as formas sine escleroderma, nas quais não há espessamento cutâneo, e as formas de overlap (sobreposição), nas quais existe sobreposição com uma ou mais doenças autoimunes. 

O acometimento gastrointestinal é frequente (90% dos casos) e precoce. Normalmente, é o primeiro sintoma não Raynaud da ES. Pode acometer todo o trato gastrointestinal, com destaque para a doença do refluxo gastroesofágico (com esôfago de Barret em 13% dos casos) e disfagia (podendo haver acalasia), além de pseudobstrução intestinal crônica, síndromes disabsortivas, supercrescimento bacteriano e ectasia vasucular antral (GAVE). 

Dentre as manifestações musculoequeléticas da ES, podemos destacar a artralgia, artrite, contraturas articulares pela fibrose cutânea e periarticular e miosite (pela ES ou por miopatias autoimunes associadas). 

A principal preocupação na ES é o acometimento pulmonar, já que essa é a principal causa de óbito nesse grupo de pacientes. Dois fenótipos clínicos podem ser observados e eles podem se sobrepor: a hipertensão pulmonar e a doença intersticial pulmonar. A primeira possui associação com as formas cutâneo limitadas da doença; clinicamente se associa com uma presença de FRy prolongado, telangiectasias e alterações na capilaroscopia, denotando o acometimento vascular mais significativo nesses casos, além de positividade para o anticentrômero. 

Já a segunda está mais associada com a forma difusa da doença e positividade para o anti-Scl70; o padrão tomográfico mais frequente o de pneumonia intersticial não específica (NSIP), seguido do de pneumonia intersticial usual (UIP). 

O acometimento cardíaco está mais associado com as formas cutâneo difusas e anti-Scl 70 positivas. Pode haver pericárdica, cardiopatia isquêmica, miocardiopatia dilatada e/ou restritiva, cor pulmonale e distúrbios de condução. A crise renal esclerodérmica também predomina nas formas difusas e anti-Scl70 positivas e se expressa como uma microangiopatia trombótica (MAT), com hipertensão, encefalopatia, convulsões e rápida piora da função renal. 

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Exames complementares

Os exames complementares na esclerose sistêmica visam avaliar comprometimento orgânico (inespecífico), detectar autoimunidade (através de sorologias), avaliar a vasculopatia e rastrear complicações. 

A capilaroscopia de leito ungueal é o exame capaz de detectar mais precocemente a ES. Está indicada na avaliação de todo paciente com fenômeno de Raynaud. Nas formas precoces, podemos identificar dilatações e megacapilares. Nas formas ativas, ocorre um aumento no número de dilatações e megacapilares, com redução na densidade capilar e presença de micro-hemorragias. Na fase tardia, há uma importante redução na densidade capilar (“praia vazia”) e neoformação vascular. 

Nos exames gerais, podemos identificar anemia da inflamação e elevação e provas inflamatórias. A elevação da creatinina aponta para o diagnóstico de crise renal esclerodérmica (nesse caso, podemos identificar esquizócitos no sangue periférico). A elevação de enzimas musculares, como CK, LDH, TGO e TGP, podem sugerir associação com miopatias autoimunes. É possível ocorrer elevação do NT-pró-BNP, por consequência de cor pulmonale pela hipertensão arterial pulmonar ou pelo acometimento cardíaco. 

O FAN é positivo em 85% dos casos, aproximadamente, geralmente com padrão nucleolar (mais frequente), nuclear pontilhado fino ou centromérico. Os anticorpos ES-específicos estão presentes em 70-60% dos pacientes. Os três anticorpos que fazem parte dos critérios de classificação do ACR/EULAR 2013 são: anti-Scl70 (formas difusas com doença intersticial pulmonar, cardíaco e renal), anticentrômero (formas limitadas, com hipertensão arterial pulmonar) e anti-RNA polimerase III (menos disponível, relação com crise renal e neoplasias). Outros dois anticorpos descritos são: antifibrilarina (anti-U3-RNP, associado à miosite e à hipertensão arterial pulmonar) e anti-Th/To (relação com doença intersticial pulmonar). 

Todo paciente com diagnóstico de ES deve ser submetido à rastreamento para hipertensão pulmonar, doença intersticial pulmonar e acometimento cardíaco. A prova de função pulmonar deve ser solicitada no diagnóstico e a cada três a seis meses, por três anos. O ecocardiograma e ECG devem ser realizados anualmente. A TC de tórax deve ser solicitada no baseline e repetida conforme a indicação pelos outros exames. O cateterismo cardíaco pode ser necessário para uma melhor avaliação da hipertensão arterial pulmonar e diferenciação com causas pós-capilares. 

Classificação e diagnóstico

O diagnóstico da ES é clínico e pode ser endossado pelos critérios classificatórios do ACR/EULAR 2013. Esses critérios consistem de vários itens ponderados, a saber: espessamento cutâneo acima das metacarpofalangeanas (9 pontos), espessamento cutâneo dos dedos (esclerodactilia 4 pontos, puffy hands 2 pontos), lesões de polpa digital (úlceras digitais 2 pontos, microcicatrizes 3 pontos), FRy (3 pontos), autoanticorpos específicos para ES (anticentrômero, anti-Scl70 e anti-RNA polimerase III – 3 pontos), telangiectasias (2 pontos), capilaroscopia periungueal alterada (2 pontos) e acometimento pulmonar (HAP ou doença intersticial pulmonar – 2 pontos). Caso o paciente apresente 9 ou mais pontos, ele é classificado como ES. 

Diagnóstico diferencial

Os diagnósticos diferenciais da ES envolvem as dermopatias fibrosantes: esclodermia localizada, escleredema, escleromixedema, mixedema, fasciíte eosinofílica, POEMS, doença enxerto-versus-hospedeiro, fibrose sistêmica nefrogênica, quiroartropatia diabética, entre outras. As principais características que diferenciam essas doenças da esclerose sistêmica são a ausência de FRy, ausência de alterações capilaroscópicas típicas de ES, ausência de esclerodactilia e ausência de autoanticorpos. Algumas doenças atróficas da pele também podem se confundir com ES, como líquen escleroso e atrófico e atrofodermia de Pasini-Pierini. 

Tratamento da esclerose sistêmica

O tratamento da esclerose sistêmica envolve medidas não farmacológicas e farmacológicas. 

Dentre as medidas não farmacológicas, devemos orientar os pacientes a minimizarem a exposição ao frio, para evitar episódios de FRy. Além disso, os pacientes devem adotar hábitos de vida saudáveis, interromper o tabagismo, realizar medidas antirrefluxo e reabilitação motora e cardiopulmonar (naqueles com acometimento). A imunização e rastreamento neoplásico adequados para a idade são fundamentais. 

O uso de corticoterapia em pacientes com ES deve ser sempre realizada com cuidado. De modo geral, deve ser evitada. Caso não seja possível evitar, devemos utilizar as menores doses necessárias e evitar doses de prednisona >20 mg/dia, pelo risco de crise renal esclerodérmica. 

A primeira linha de tratamento farmacológico do FRy são os bloqueadores do canal de cálcio diidropiridínicos (nifedipina, anlodipina); fluoxetina e losartana parecem ter algum efeito benéfico. Nos casos refratários ou na presença de úlceras digitais, inibidores da PDE-5 (sildenafila, tadalafila) e inibidores da endotelina (bosentana – especialmente para prevenção de recorrência) podem ser prescritos. Para casos de isquemia crítica, o uso de análogos da prostaglandina (alprostadil) endovenoso está indicado. 

Para HAP, o uso combinado de sildenafila com ambrisentana ou macitentana ou tadalafila com bosentana parece ter melhores desfechos clínicos do que o uso isolado. Outras medicações estão indisponíveis no Brasil. Já para o tratamento da doença intersticial pulmonar, a primeira linha é o micofenolato mofetil, com base nos resultados do Scleroderma Lung Study; alternativamente, podemos utilizar a ciclofosfamida. Casos refratários podem ser tratados com rituximabe ou tocilizumabe. O antifibrótico nintedanibe também pode ser prescrito para esse fim. 

A fibrose cutânea pode ser tratada com metotrexato, micofenolato mofetil, ciclofosfamida (casos rapidamente progressivos), rituximabe e, até mesmo, transplante de medula óssea para casos bem selecionados. Sintomas musculoesqueléticos respondem ao uso de corticoides em baixas doses, metotrexato, azatioprina, micofenolato mofetil, hidroxicloroquina, entre outros.

As manifestações gastrointestinais devem ser tratadas de acordo com o tipo de acometimento e seguem o mesmo padrão dos pacientes sem o diagnóstico de ES: DRGE e disfagia com inibidores de bomba de prótons e procinéticos e o supercrescimento bacteriano com antibioticoterapia em rodízio, se necessário. A crise renal esclerodérmica é tratada com inibidores da ECA em altas doses; outros anti-hipertensivos podem ser úteis no controle pressórico. A terapia renal substitutiva pode ser necessária. Se persistente, o transplante renal é o tratamento definitivo. 

Veja ainda: Como fazer a avaliação inicial das vasculites sistêmicas?

Conclusão

A esclerose sistêmica é uma doença autoimune que combina vasculopatia e fibrose muliorgânica. Apesar de recentes avanços no diagnóstico e tratamento, a letalidade continua alta. O reconhecimento precoce e tratamento adequado podem auxiliar na melhora dos desfechos da doença. 

Referências bibliográficas:
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