Esclerose múltipla: orientações para planejamento familiar

A esclerose múltipla (EM) é doença inflamatória do sistema nervoso central que afeta predominantemente mulheres, com uma razão estimada entre 2:1 a 3:1. Geralmente, se inicia entre os 20-45 anos, época em que muitos casais realizam considerações acerca de planejamento familiar. 

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A maioria dos casos de mulheres com essa condição apresentam gestações seguras e com a formação de crianças saudáveis. É esperado, tanto por neurologistas quanto pacientes, que no período gestacional ocorra uma relativa remissão da atividade de doença da EM. Além disso, o risco de recorrência no puerpério apresentou um decréscimo nos últimos anos baseado em estudos observacionais.  

Ainda assim, nem sempre as alterações imunológicas ocorridas na gestação são suficientes para proteger de reativações graves de EM em mulheres gestantes que necessitaram suspender drogas modificadoras de doença (DMT) como natalizumabe e fingolimoide.  

Além disso, muitos médicos e pacientes optam por suspender as DMTs antes do início de tentativas de concepção com receio de eventos adversos relacionados à terapia. O mesmo receio se dá para a amamentação, em que o padrão costuma ser aconselhar a renúncia desse ato apesar de benefícios de saúde para a mãe e a criança. 

A Lancet Neurology publicou, neste ano, uma revisão sobre planejamento familiar em pacientes com esclerose múltipla apresentando informações atualizadas e aspectos relevantes sobre esse tópico. 

Antes da gestação 

O início de suplementação com ácido fólico deve ser realizado pelo menos 3 meses antes das tentativas para concepção, assim como a suplementação de vitamina D (no máximo 4000 U/dia) deve ser recomendada antes e durante a gestação. 

O aconselhamento vacinal é imprescindível, visto que a gestação é período de maior susceptibilidade a infecções. Vacinas atenuadas são contraindicadas no período gestacional, enquanto as inativadas são geralmente consideradas seguras. 

Uma preocupação comum do paciente com esclerose múltipla é qual seria o risco potencial de herança para os filhos dessa doença. O risco, ajustado para a idade, de esclerose múltipla para prole gira em torno de 2-3,5% podendo ficar em torno de 20% quando ambos os pais são afetados com a condição.  

Esse risco é muito mais baixo do que o esperado para transtornos monogênicos mendelianos, portanto, pacientes com esclerose múltipla podem ser assegurados do baixo risco dessa condição para a sua prole. 

Durante a gestação 

Surtos clínicos

A terapia de surtos clínicos na gestação deve ser balanceada considerando a aceleração na recuperação funcional com o risco associado ao tratamento.  

Em casos de sintomas discretos ou sintomas que não interferem nas atividades diárias, não se recomenda terapia para surto clínico. Por outro lado, nos casos de sintomas significativos com repercussão funcional, corticoides não-fluorados (prednisona, prednisolona e metilprednisona) são preferíveis devido à baixa transferência placentária e curta meia-vida. Nessa circunstância, orienta-se metilprednisolona 500-1000mg ao dia (ou derivados em dose equivalente), durante 3-5 dias são recomendados. 

No caso de mulheres gestantes que não apresentaram resposta clínica à corticoterapia, podem se beneficiar de plasmaférese. Imunoglobulina intravenosa não é terapia convencional para recorrências de surtos em esclerose múltipla e, por poder aumentar o risco de trombose na gestação, não é recomendada. 

Terapia de manutenção

Grande parte dos medicamentos orais são estruturados em pequenas moléculas que possuem maior potencial de cruzar a barreira placentária. Por esse motivo, drogas modificadoras de doença para EM por via oral com potencial teratogênico devem ser interrompidas antes ou durante a gestação.  

Embora essas drogas orais  com destaque para moduladores do receptor S1P (ex.: fingolimoide)  sejam contraindicadas na gestação devido a potencial teratogênico, é necessário destacar o potencial risco de surto clínico no contexto de sua suspensão. 

Por outro lado, a placenta é uma barreira mecânica para drogas estruturadas como moléculas maiores, sendo o caso das drogas injetáveis e dos anticorpos monoclonais. Drogas injetáveis como beta-interferons e acetato de glatirâmer podem ser continuados ou suspensos de acordo com discussão entre médico-paciente. 

Anticorpos monoclonais anti-CD20 não devem ser rotineiramente utilizados durante o período gestacional. Já o natalizumabe, também anticorpo monoclonal, porém com atuação em inibir a subunidade α4β1 da integrina, não possui recomendação para suspensão inicialmente em virtude de um maior risco para rebote de surto clínico. Além disso, o natalizumabe possui provável baixo efeito teratogênico.  

No caso de manutenção de natalizumabe, orienta-se no período gestacional a extensão de intervalo de doses (entre 6-8 semanas) até o terceiro trimestre (30-34 semanas gestacionais), com reintrodução precoce no puerpério. 

Leia também: Tratamentos para infertilidade e os surtos em pacientes com esclerose múltipla

Considerações sobre o parto 

Usualmente, as mulheres com esclerose múltipla são aconselhadas sobre a gestação ser tratada como alto risco e os autores referem que, exceto pelas considerações relacionadas à incapacidade em torno de surtos clínicos, não necessariamente será esse o caso.  

Apesar dessa população apresentar maiores taxas de indução de parto, vias de parto cesarianas, neonatos pequenos para a idade gestacional comparados a gestantes não portadoras de esclerose múltipla, não há evidências de aumento de risco de desfechos adversos neonatais nas mulheres com esclerose múltipla. 

Portar essa condição não deve influenciar na decisão de parto a não ser que a paciente tenha ressalvas clínicas quanto à fadiga e à incapacidade funcional. Já foi demonstrado que a fadiga é fator limitante para parto vaginal. 

É importante destacar que anestesia epidural ou via de parto não apresentaram associações com taxa de recorrência de esclerose múltipla no puerpério. 

Puerpério e amamentação 

Surtos clínicos

Em casos de recorrência de surtos no puerpério, corticoterapia de alta dose e plasmaférese podem ser recomendadas nessa fase. Por outro lado, não há dados que suportam uso de imunoglobulina intravenosa para o puerpério em mulheres com EM. 

A transferência de metilprednisolona para o leite materno é baixo (<1.5%), de forma que pausar a amamentação entre 2-4 horas após a infusão pode já reduzir a concentração dessa droga. 

Terapia de manutenção

A atividade de doença no puerpério geralmente possui associação com atividade de doença pré-gestacional (a partir dos números de surtos clínicos e alterações em neuroimagem), gravidade da doença (através da escala de EDSS), número de surtos clínicos durante a gestação e suspensão de terapias de alta efetividade antes da concepção. 

Além disso, no puerpério, uma preocupação gira em torno da indicação ou não sobre o aleitamento materno. Como a amamentação é um momento com diversos benefícios à saúde da mãe e de sua criança, as pacientes com esclerose múltipla devem receber suporte para amamentação caso seja sua vontade.  

Recentemente, houve autorizações no mercado europeu para uso de beta-interferon (em 2019) e de acetato de glatirâmer (em 2022) para o período de lactação. No caso de mulheres com alto risco de surto clínico no puerpério, as terapias com anticorpos monoclonais são preferíveis entre beta-interferons ou acetato de glatirâmer de acordo com recomendações dos autores dessa publicação.  

De acordo com essa revisão da Lancet Neurology, há recomendações de terapias modificáveis, como: natalizumabe, ocrelizumabe, rituximabe e ofatumumabe. O alemtuzumabe pode também ser considerado em casos de início de amamentação após quatro meses da última infusão dessa droga. 

Geralmente, as drogas modificadoras de doença (DMTs) na esclerose múltipla são reintroduzidas nas pacientes com desejo de amamentação após a formação do leite materno maduro (isto é, após duas semanas do pós-parto). Em caso de pacientes que não possuem planejamento para a amamentação, as DMTs devem ser retomadas no puerpério mais precocemente. 

O potencial risco de amamentar lactentes sob uso de DMTs seria em torno de toxicidade farmacológica, o status de saúde dessa criança e o pH gástrico. A dose infantil relativa (RID) pode ser calculada para determinar a porcentagem de exposição da droga ao lactente através do leite materno comparando com a dose materna. Geralmente, um RID < 10% pode ser considerado seguro para a amamentação. Ainda assim, é importante ressaltar que algumas terapias com um RID baixo não são recomendadas como, por exemplo, a cladribina. 

Leia também: Reiniciação da terapia modificadora da esclerose múltipla no pós-parto

Sabe-se que 50% dos homens portadores de esclerose múltipla descrevem disfunção erétil e ejaculatória ou sintomas relacionados a redução de libido.  

Medicamentos sintomáticos dessa doença como inibidores de recaptação de serotonina, benzodiazepínicos ou tricíclicos podem resultar em hiperprolactinemia com possível consequência em hipogonadismo hipogonadotrófico  levando à redução de testosterona. 

Ainda é incerto se a exposição a DMTs pode resultar em toxicidade reprodutiva. Contudo, a cladribina é medicamento que pode afetar a reprodução masculina em virtude de atuar na síntese de DNA nesse contexto, homens são aconselhados a não reproduzir por pelo menos seis meses após finalizado o tratamento.

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Autor

Médica formada pela Universidade Federal Fluminense em 2016. ⦁ Neurologista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2020. ⦁ Fellow em Anormalidades do Movimento e Neurologia Cognitiva pelo Hospital das Clínicas da UFMG em 2021. ⦁ Atualmente, compõe o corpo clínico como neurologista de clínicas e hospitais em Belo Horizonte como o Centro de Especialidades Médicas da Prefeitura de Belo Horizonte, Hospital Materdei Santo Agostinho e Hospital Vila da Serra.

Referências bibliográficas:
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  • Krysko, Kristen M., et al. “Family planning considerations in people with multiple sclerosis.” The Lancet Neurology 22.4 (2023): 350-366. 


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