A cetoacidose diabética é uma das principais emergências relacionadas ao diabetes e é definida, de acordo com a diretriz brasileira da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD) como uma tríade composta por glicemia > 200 mg/dL, acidose metabólica (pH < 7,3 ou BIC < 15) e presença de cetose (cetonemia ou cetonúria).
Veja também: Bomba de insulina de alça fechada em gestantes com diabetes tipo 1 é segura?
Enquanto a definição quanto aos níveis glicêmicos e a acidose podem variar um pouco (algumas referências colocam níveis > 250 mg/dL, ou BIC < 18), há ainda mais controvérsia quando se trata da cetoacidose diabética euglicêmica (CAD-E), já que apesar de se tratar de uma entidade já conhecida desde os anos 70, foi a partir do surgimento e uso dos inibidores de SGLT-2 que houve um boom de incidência, alarmando os clínicos quanto a esse difícil diagnóstico.
Vale lembrar que no momento, há cinco medicações da classe aprovados pelo FDA (empagliflozina, dapagliflozina, canagliflozina, ertugliflozina e bexagliflozina), além do inibidor SGLT-1 e 2, sotagliflozina.
A cetoacidose euglicêmica pode acontecer em diferentes cenários mesmo sem uso de inibidores de SGLT-2, como gestação, presença de doença hepática avançada ou uso de álcool, drogas ilícitas como cocaína e desidratação grave. Contudo, o uso de iSGLT-2 combinado a essas situações (salvo a gestação, uma contraindicação dessa classe) pode aumentar ainda mais o risco do desenvolvimento da CAD-E.
Foi publicado em setembro de 2023 uma revisão sobre o tema no British Medical Journal Diabetes, abordando definições, fatores de risco, apresentação e manejo dessa condição.
Definições
A CAD-E pode acontecer tanto em indivíduos com DM1 como DM2, apesar de ser mais comum no DM1 visto que são pessoas com insulinopenia. A mortalidade costuma ser entre 0,65 a 3,3%. O diagnóstico da CAD-E é parecido com o da CAD, porém sem o componente da hiperglicemia. A definição trazida pelos autores da revisão é a seguinte:
- Glicemia < 200 mg/dL;
- pH arterial ≤ 7,3
- BIC ≤ 18 mEq/L
- Ânion gap > 10
A CAD-E também pode ser subdividida em leve, moderada ou grave, de acordo com o pH e o bicarbonato:
Leve | Moderada | Grave | |
pH | 7,25 – 7,3 | 7,0 – 7,24 | < 7,0 |
BIC | 15-18 mEq/L | 10-15 mEq/L | <10 mEq/L |
Uso dos inibidores de SGLT-2 aumentou substancialmente o risco de cetoacidose euglicêmica
Apesar de ser um evento ainda incomum, o crescente uso dessa classe medicamentosa fez com que essa situação clínica ganhasse maior atenção. Dados da revisão apontam que, entre 2015 e 2020, a prescrição de inibidores de SGLT-2 bateu a casa dos 60 milhões, mais do que dobrando no período. São medicações que cada vez mais estarão em voga, uma vez que novos estudos desde então demonstraram outros benefícios além do controle glicêmico e redução de risco cardiovascular, como o impacto na insuficiência cardíaca e nefroproteção.
Desde 2015, no entanto, é sabido do risco da CAD associado a essas medicações, após a detecção de 20 casos nos EUA. Dados epidemiológicos desde então mostram que a CAD acontece em 0,5/1000 pacientes/ano com DM2, o que significa cerca de um terço de todos os casos de cetoacidose em indivíduos com DM. Vale lembrar que estão associados não só à CAD-E, mas também à cetoacidose clássica.
Leia ainda: Agonistas de GLP-1 ou inibidores de SGLT-2: qual a melhor opção para diabéticos?
Fisiopatologia da cetoacidose euglicêmica
A CAD acontece em um cenário de deficiência de insulina absoluta ou relativa, na presença de uma resposta excessiva de contrarreguladores (cx: corticoides, glucagon, GH). A CAD-E acontece em cenários onde exista maior depuração renal de glicose (por exemplo, durante o uso de inibidores de SGLT-2).
Comumente, devido à insulinopenia e ao excesso de contrarreguladores, existe estímulo à lipólise, glicogenólise e gliconeogênese, o que culmina na produção de cetoácidos e na hiperglicemia. No entanto, como existe maior depuração renal, o nível de glicemia permanece menor.
Os principais fatores de risco associados à CAD-E incluem infecções/sepse, desidratação, trauma, dietas cetogênicas, vômitos persistentes, anorexia, gastroparesia, pancreatite aguda, uso de álcool e cocaína e doença hepática crônica. Indivíduos com IMC baixo ou normal são particularmente suscetíveis.
Sintomas e avaliação inicial
Os sintomas são basicamente indistinguíveis da CAD e incluem náuseas, vômitos, fadiga, perda de apetite, dor abdominal, taquicardia e taquipneia, ou seja, sintomas inespecíficos. Talvez a principal diferença seja na instalação, que costuma ser mais gradual na CAD-E do que na CAD convencional e, como não há hiperglicemia, normalmente não costuma haver poliúria, polidipsia ou alterações graves de consciência.
Para se fazer o diagnóstico, devemos ter um alto nível de atenção e baixo limiar para suspeição, uma vez que pode se manifestar simplesmente como um quadro inespecífico em um indivíduo com diabetes que está em uso de inibidores de SGLT-2. Na avaliação, é fundamental ainda questionar sobre o uso de álcool e substâncias como cocaína.
Vale a pena se atentar a diferenciais, sobretudo quando houver acidose metabólica com AG elevado mas com cetonas normais, que pode incluir acidose láctica, sepse, insuficiência renal, cetoacidose alcoólica, intoxicação por metanol e overdose de salicilato, por exemplo.
Outra situação que merece menção é o perioperatório. Devemos suspender essa classe entre três a quatro dias antes de procedimentos, também com o objetivo de reduzir o risco pós-operatório de CAD-E.
Tratamento da cetoacidose euglicêmica
O tratamento da CAD-E deve ser parecido com o da CAD convencional, baseando na administração de insulina EV. O objetivo é manter o tratamento com insulina até que haja correção da acidose, com normalização do ânion gap.
O esquema de tratamento para a CAD-E sugerido nesta revisão é o seguinte:
(Lembrar que não há hiperglicemia):
- Insulina EV em infusão contínua a 1-2U/hora;
- Soro glicosado 5-10% em infusão para manter glicemia entre 120 e 180 mg/dL;
- Os demais cuidados devem seguir o padrão do tratamento da CAD.
*Obs: A diretriz da SBD não diferencia a dose de insulinoterapia no início do tratamento, mantendo recomendação de bolus inicial de 0,1U/kg + infusão de 0,1U/kg/hora e ajuste conforme nível glicêmico.
Critérios de resolução:
- Paciente consegue se alimentar;
- BIC > 15 e pH 7,3;
- Cetonemia < 0,6 mmol/L (em nossa realidade, quando disponível);
- AG normalizado.
O uso da insulina SC deve ser feito 2-3h antes de parar a infusão subcutânea e pode seguir protocolos já utilizados na CAD, como basear a dose na necessidade de insulina das últimas 6h x 4 (para se estimar a necessidade em 24h). Devemos utilizar cerca de 50-70% dessa dose, divididas entre insulina basal e prandial.
Os inibidores de SGLT-2 devem ser suspensos durante a fase aguda e há risco de recorrência nas primeiras 24h após a resolução da CAD e, por isso, os pacientes devem ser monitorados por esse período.
Após a recuperação completa, o retorno dessa classe deve ser uma decisão individualizada e cuidadosamente discutida entre médico e paciente.
Saiba mais: Glucagon na fisiologia de diabetes, obesidade e esteatose hepática
Mensagem prática
A principal mensagem que deve ficar é a necessidade de atenção ao diagnóstico. Em indivíduos com diabetes, em uso de iSGLT-2, vale a pena, frente a sintomas inespecíficos, avaliar com atenção a possibilidade desse diagnóstico potencialmente grave.
Ainda, é importante, dentre as orientações aos pacientes, explicar sobre a possibilidade desse evento para se aumentar a atenção a possíveis sintomas que auxiliem numa eventual detecção precoce.
No entanto, não devemos ter “medo” de indicar essa classe de medicações em indivíduos com DM2, com doença renal crônica ou insuficiência cardíaca que possam se beneficiar do tratamento, uma vez que são revolucionárias no sentido de preservação renal, cardiovascular e de alto valor para esses pacientes. A incidência de CAD nesses indivíduos e a CAD-E são eventos muito raros (0,5/1000 pessoas/ano) e os benefícios superam e muito os riscos nessas situações.
Selecione o motivo:
Errado
Incompleto
Desatualizado
Confuso
Outros
Sucesso!
Sua avaliação foi registrada com sucesso.
Avaliar artigo
Dê sua nota para esse conteúdo.
Você avaliou esse artigo
Sua avaliação foi registrada com sucesso.
Autor
Endocrinologista pelo HCFMUSP ⦁ Telemedicina no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) ⦁ Residência médica em Clínica médica pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) ⦁ Graduação em Medicina pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP) – Faculdade de Medicina de Botucatu
- Chow E, Clement S, Garg R. Euglycemic diabetic ketoacidosis in the era of SGLT-2 inhibitors. BMJ Open Diabetes Res Care. 2023 Oct;11(5):e003666. DOI: 10.1136/bmjdrc-2023-003666. PMID: 37797963; PMCID: PMC10551972.
Santomauro A, Junior A, Raduan R, Bertoluci M. Diagnóstico e Tratamento da Cetoacidose Diabética Euglicêmica. Diretriz Oficial da Sociedade Brasileira de Diabetes (2023). DOI: 10.29327/557753.2022-22, ISBN: 978-85-5722-906-8.