Acidentes domésticos nas férias escolares: intoxicação exógena acidental

Nas férias escolares, há um aumento no número de acidentes domiciliares e o médico pediatra precisa estar preparado para o manejo de cenários como queimaduras, afogamento e traumatismos em geral. Situações comuns e que, muitas vezes, geram dúvidas são as formas de intoxicação exógena aguda acidental.

Em algumas circunstâncias, a ocorrência e a origem da intoxicação são evidentes, pois a substância responsável é encontrada próxima à criança, mas, em outros momentos, a intoxicação pode ser oculta, o que torna especialmente importante lembrar desse diagnóstico diferencial e conhecer as síndromes de intoxicação mais frequentes.

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mão de bebê internado com intoxicação exógena

Quando considerar a possibilidade de intoxicação exógena?

Nos casos de alteração do nível de consciência (sonolência excessiva, irritabilidade/agitação intensa), crise convulsiva, acidose metabólica inexplicável, disfunção de múltiplos órgãos ou sinais e sintomas relacionados ao aparelho cardiopulmonar (ex.: arritmias, hipotensão, hipoxemia), sem que haja doença de base, especialmente em crianças em faixa etária de risco, entre um e quatro anos de idade.

Tratamento inicial da intoxicação exógena

Independente da causa específica da intoxicação, o tratamento inicial envolve estabilização do paciente, conforme as diretrizes do PALS (Pediatric Advanced Life Support), assegurando a perviedade das vias aéreas e avaliando a respiração e sistema circulatório através de monitorização cardiopulmonar, avaliação de pulso, pressão arterial, cor e temperatura da pele, além do tempo de enchimento capilar. Considerar garantir um acesso venoso periférico e realizar eletrocardiograma, já que arritmias são comuns nesses casos.

Quando há rebaixamento importante do nível de consciência, considerar intubação orotraqueal para preservar vias aéreas e evitar broncoaspiração e demais complicações. Ressuscitação volêmica, antiarrítmicos e vasopressores podem ser necessários a depender do quadro clínico.

Diagnóstico do agente causal e tratamento específico

Questionar sobre medicamentos de uso contínuo utilizados pela criança e por familiares, incluindo benzodiazepínicos, opioides, vitaminas, xaropes e analgésicos/anti-inflamatórios, além de uso de cosméticos e produtos de limpeza aos quais a criança teria acesso podem sugerir a origem da intoxicação e indicar o tratamento adequado. A descrição das circunstâncias nas quais a criança foi encontrada (local, contexto) também pode fornecer pistas. A determinação do agente causal é importante porque pode indicar uma terapia específica (Tabela 1).

Alguns exames complementares também podem auxiliar na identificação da etiologia, por isso sugere-se a coleta dos seguintes: função renal, função hepática, eletrólitos, gasometria, glicose e EAS. A osmolaridade sérica deve ser calculada com os valores de sódio, glicose e ureia coletados simultaneamente.

As duas causas mais frequentes de alteração do nível de consciência no contexto de intoxicação exógena são hipoxemia e hipoglicemia, por isso, oximetria e pulso e glicemia capilar devem ser avaliadas o mais breve possível.

  • Hipoxemia: ofertar oxigênio e avaliar necessidade de intubação. O oxímetro de pulso pode não ter uma leitura acurada nos casos de intoxicação por monóxido de carbono (falsamente normal) e nos pacientes com metahemoglobinemia (falsamente baixo).
    • Metahemoglobinemia: suspeitar na presença de cianose central associada a baixa SatO2 no oxímetro de pulso, mas com PaO2 alta e SatO2 normal em gasometria arterial. Nesses casos, o sangue coletado pode apresentar uma coloração marrom semelhante a chocolate que não se altera para vermelho.
  • Hipoglicemia: administrar dose de soro glicosado 10% (2,5 mL/kg) por acesso venoso ou intraósseo (o extravasamento de soluções mais concentradas de glicose pode levar a dano tissular).

Assim que o paciente for estabilizado, o objetivo é tentar reduzir a absorção da substância causadora da intoxicação. Nesse contexto, está contraindicado que se provoque êmese. A lavagem gástrica, por sua vez, não faz parte dos protocolos mais recentes pela ausência de evidências demonstrando seu benefício. Em crianças, a técnica de escolha na maioria das vezes é administração oral de carvão ativado, embora essa abordagem não esteja indicada rotineiramente. O benefício se dá, especialmente, na primeira hora após a ingestão, já que seu efeito ocorre majoritariamente no estômago. Dose: 0,5-1g/kg (máximo: 50 g).

Quando não é possível determinar o agente causador da intoxicação, a identificação da síndrome toxicológica relacionada pode direcionar para a terapêutica mais apropriada.

Tabela 1: Tratamentos específicos para intoxicações comuns.

Intoxicação Antídoto/Antagonista Dose
Paracetamol N-acetilcisteína Ataque: 140 mg/kg (VO) + 70 mg/kg de 4/4h (17 doses – dose total: 1330 mg/kg)
Organofosforado/Carbamato Atropina 0,02 mg/kg (IV) em bolus (dose mínima de 0,01 mg e máxima de 0,5 mg para crianças).

Repetir até se obter o efeito desejado.

Ferro Deferoxamina 5-15 mg/kg/h (IV).

Repetir até se obter o efeito desejado.

Metahemoglobinemia Azul de metileno 1% 1-2 mg/kg (IV) lento.

Repetir até se obter o efeito desejado.

Salicilatos e tricíclicos Bicarbonato de sódio 150 mEq + 40 mEq de KCl em 1 litro de SG5% em infusão contínua para manter débito urinário de 1-2 mL/kg/h e pH urinário de 7,5
Opioides Naloxone 0,4-2 mg (IV).

Repetir até se obter o efeito desejado

Benzodiazepínicos Flumazenil* 0,01 mg/kg (IV) lento (máximo: 0,2 mg). A seguir, administrar doses de 0,005-0,01 mg/kg (máximo de 4 vezes com intervalos de, pelo menos, 1 minuto, até se obter o efeito desejado.

Nota: *Indicado nos casos de intoxicação confirmada por benzodiazepínicos nos quais há alteração do nível de consciência ou ataxia, desde que o paciente não faça uso da medicação anticonvulsiva (pode reduzir o limiar convulsivo). | Fonte: Smilkstein et al. (1988)

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Síndromes excitatórias

  • Simpaticomiméticos (descongestionantes, como a pseudoefedrina);
  • Anticolinérgicos (alguns anti-histamínicos, como a hidroxizina, além de escopolamina, atropina e antiespasmódicos).

Aqui, a apresentação clínica típica é composta por midríase e taquicardia. Agitação e hipertensão ocorrem com simpaticomiméticos enquanto a intoxicação por anticolinérgicos cursa geralmente com rebaixamento do nível de consciência e hipotensão (Tabela 2).

Tabela 2, parte 1: Manifestações clínicas relacionadas às intoxicações agudas mais comuns.

Sinais e Sintomas

Olhos

Pressão arterial e pulso

Miose Midríase Hipotensão e

bradicardia

Hipertensão e taquicardia

Substâncias

Opioides Atropina Opioides Hormônio tireoideano
Benzodiazepínicos Pseudoefedrina Benzodiazepínicos Pseudoefedrina
Clonidina Escopolamina Clonidina Anti-histamínicos
Antipsicóticos Anti-histamínicos Bloqueadores do canal de cálcio Antiparkinsonianos
Fisostigmina Antiparkinsonianos Beta-bloqueadores Clozapina
Fenitoína Relaxantes musculares Metildopa Metilfenidato
Organodosforados Atropina Digoxina Organodosforados
Oximetazolina Metilfenidato Antiarrítmicos Carbamatos

Tabela 2, parte 2:

Sinais e Sintomas

Respiração

Nível de consciência

Taquipneia Bradipneia Agitação Sonolência

Substâncias

Antiespasmódicos Antidepressivos Atropina Opioides
Paracetamol Benzodiazepínicos Tricíclicos* Benzodiazepínicos
Escopolamina Anticonvulsivantes Escopolamina Anticonvulsivantes
Ferro Antipsicóticos Anti-histamínicos Anti-histamínicos
Antiparkinsonianos Fisostigmina Antiparkinsonianos Betabloqueadores
Salicilatos Relaxantes musculares Salicilatos Salicilatos
Atropina Organodosforados Atropina Organodosforados
Etilenoglicol Carbamatos Fenilpropanolamina ISRS**

* Antidepressivos tricíclicos.
** ISRS: Inibidor seletivo da recaptação de serotonina

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Síndromes depressoras

  • Opioides (codeína, tramadol, morfina);
  • Sedativos-hipnóticos (benzodiazepínicos, como o clonazepam, alprazolam e loraze-pam);
  • Colinérgicos (inseticidas – organofosforados e carbamatos).

Nesses casos, o paciente comumente apresenta miose e rebaixamento do nível de consciência, além de bradicardia e hipotensão, com exceção dos agentes colinérgicos, que podem cursar com hipertensão e taquicardia. Uma manifestação neurológica relacionada à intoxicação por benzodiazepínicos é a ataxia (Tabela 2).

No Brasil, existem diversos centros de intoxicação com especialistas da área que disponibilizam uma linha telefônica para auxiliar no manejo de intoxicações exógenas e que, muitas vezes, fazem o acompanhamento desses pacientes:

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Autor

Graduada em Medicina pela Universidade Estácio de Sá (UNESA) • Residência médica em Pediatria pelo Hospital Universitário Pedro Ernesto (UERJ) • Residência médica em Alergia e Imunologia Pediátrica no Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ) • Mestra em Saúde Materno-Infantil (IFF/FIOCRUZ) • Membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (ASBAI) • Membro do grupo de análise de sequenciamento genético de doenças raras (IFF/FIOCRUZ) • Preceptora da residência médica de Alergia e Imunologia Infantil do Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ) • Consultora de amamentação • Instagram: @barbarareis.pediatra

Referências bibliográficas:
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  • Gummim DD, et al. 2019 Annual Report of the American Association of Poison Control Centers’ National Poison Data System (NPDS): 37th Annual Report (2019). Clin Toxicol (Phila). 2020 Dec;58(12):1360-1541. doi: 10.1080/15563650.2020.1834219.
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