No dia em que Portugal se estrear no Euro 2024 terão passado 17 dias desde o arranque do estágio. Na melhor das hipóteses (leia-se, se chegar à final do Europeu), a Seleção Nacional estará junta 43 dias. Por norma, só com as famílias passam tanto tempo.
Há personalidades e hábitos diferentes, formas distintas de encarar os desafios e de lidar com as saudades dos entes queridos. Mente sã, corpo são. Mas como se gerem 26 pessoas diferentes em convívio permanente, sem contar com o staff técnico da Seleção?
Para obter respostas, o Maisfutebol conversou com Jorge Silvério, doutorado em psicologia do desporto que trabalha com a Seleção de futsal desde 2015 e que acompanhou de perto os jogadores nas conquistas mais recentes.
Maisfutebol: Os jogadores chegam a esta competição depois de épocas desgastantes. Como é que se preparam para uma prova da envergadura de um Europeu?
Jorge Silvério: A competição surge no fim da temporada e há uma grande diferença em termos de cansaço físico e mental. Os jogadores conseguiram ter uns dias de férias, recuperaram fisicamente e foram integrados em diferentes momentos em função dos compromissos dos clubes. Depois há a parte da fadiga mental que é extremamente importante. É fim de época, os jogadores tiveram muita competição e há que abordar isso. O fundamental é pensar em termos de objetivos individuais e sobretudo, coletivos que se devem sobrepor aos individuais. Essa é a estratégia de motivação mais poderosa. E o facto de jogarem um Europeu, no qual Portugal pode ir longe, ajuda a lidar com o cansaço físico e mental.
Os objetivos a curto prazo de forma a gerir melhor a fadiga mental?
Sim, claramente. Não só objetivos de curto prazo, mas também objetivos pequenos para cada atleta. Pensar em termos de objetivos é muito importante e deixa-os motivados. O facto de os jogadores sentirem que fazem parte do grupo, não só quem joga mais, mas também quem joga menos ou não joga, é fundamenta.
Não sente que a fadiga mental é poucas vezes abordada?
Muitas vezes, há mais fadiga física do que mental. Os nossos atletas jogam nos principais campeonatos e são submetidos a grande pressão. Tudo se acumula ao longo da época e causa fadiga mental. O nosso selecionador tem experiência nestas competições e parece-me que a questão das folgas, os períodos diferentes em que os jogadores se apresentaram, o facto de terem gozado férias antes do Euro, tudo isso foi muito importante.
Entende que é por isso que o selecionador faz questão de rodar os jogadores mesmo dentro dos próprios estágios como aconteceu em março?
Sim. Há quatro pilares no rendimento desportivo e por norma esquecemo-nos de um deles. Há a parte física, a parte técnica, a parte estratégica de preparação para um jogo e a parte mental. Esta última… é como se tivéssemos uma cadeira com quatro pernas e perdêssemos uma. É fundamental trabalhar as quatro vertentes. É cada vez mais relevante e tanto os jogadores como os treinadores estão atentos a essa parte mais mental.
Ainda para mais os atletas têm uma enorme exposição mediática e por vezes é duro lidar com isso em termos mentais.
É uma das profissões mais avaliada em todo o mundo. Há uma avaliação diária nos treinos que é feita pelo treinador e quando jogam há a avaliação do público. Isso introduz um fator de pressão como há em poucas profissões. É preciso ter sensibilidade, características de personalidade e ferramentas para lidar com essa pressão constante.
Mas quem já passou por essas situações adversas, acaba por ter maior estofo para superá-las mesmo perante contextos de enorme pressão e exposição mediática.
Permita-me falar do conceito de tenacidade. É o que distingue os bons dos muito bons. Há atletas que conseguem ter rendimentos muito bons em determinados jogos ou períodos, mas depois têm uma quebra. Quando têm capacidade para lidar com situações difíceis, a faixa de variação vai ser mais curtinha. Praticamente todos já tiveram alguma adversidade para superar durante a carreira. Essa dificuldade levou-os, naturalmente, a ‘desenrascarem-se’ sozinhos, mas se alguém lhes der essas ferramentes, esse processo é acelerado.
Permita-me abordar outro ponto. Há jogadores que vão disputar o primeiro Europeu das carreiras. Requerem uma abordagem diferente por parte da equipa técnica?
Há uma grande heterogeneidade na Seleção. Por vezes não valorizamos os mais velhos, mas o passar experiência, o conversar… os 26 estão em contacto e falam sobre a experiência do primeiro jogo e que tipo de estratégias usam. É pertinente os mais velhos passarem essas informações. Depois depende dos jogadores, há uns que ficam ansiosos e outros que lidam com a situação de forma diferente. O importante é cada um entender como se sente e o que tem de fazer para estar ao melhor nível.
Nesse caso o jogador tem de ter autoconsciência e capacidade de autoanálise.
Contrariamente ao que é a imagem das pessoas, atualmente os jogadores são extremamente inteligentes na procura de ferramentas que lhes podem acrescentar valor e torná-los melhores do ponto de vista mental.
Em termos práticos, durante um Europeu, como é que se recupera mentalmente de um jogo para o outro? Estamos a falar de um nível altíssimo de concentração durante cerca de 90 minutos.
Há muitos que estão habituados a jogar de três em três dias. Têm de analisar o que fizeram bem no jogo e os aspetos em que podem melhorar, fazendo a ponte para o jogo seguinte. Sem grande tempo para treinar, as estratégias mentais são muito importantes. A visualização é uma estratégia que os psicólogos usam muito porque a capacidade de recriarmos situações no nosso cérebro ajudam ao processo. Por exemplo, um jogador a analisar o jogo pode concluir que teve decisões que não foram as melhores e reflete sobre o que podia ter feito de diferente.
Mas a juntar a tudo isso, ainda há a questão das viagens que tantas vezes é subvalorizado.
As viagens são extremamente cansativas e têm peso porque provocam cansaço. É necessária grande flexibilidade. Uma das coisas que trabalhamos no desenvolvimento da tenacidade é a capacidade de o atleta lidar com pequenas mudanças. Não conseguimos prever tudo por mais planos que façamos. Acontecem imprevistos, atrasos nos voos e é necessária flexibilidade. Quando estamos mentalmente cansaços, perdemos essa característica. Mesmo em campo, há sempre coisas imprevisíveis.
O imprevisível, o desgaste físico e mental, enfim, tudo isto está presente numa competição para a qual o selecionador formou um grupo que não está habituado a estar tanto tempo junto durante muito tempo.
Não estão, naturalmente, habituados a isso. Não só os atletas, mas também o próprio staff. É necessário gerir essas dinâmicas. Podem existir conflitos, como é normal, mas o importante é prevenir e falar sobre o assunto para que isso seja desvalorizado pelo grupo quando e se acontecer.
Há estratégias que podem ajudar a contrariar isso e fortalecer a ligação entre os jogadores, mesmo até com exercícios de treino.
Sim. Tem de haver espaço de convívio e controlo dos telemóveis embora também sejam relevantes para o contacto com o exterior. Há que proporcionar momentos de convívio entre os atletas. É importante que seja criado um espírito de grupo para que todos possam convergir no mesmo objetivo desportivo. E os jogadores precisam de ter consciência de que haverá dias em que um estará mais chateado e que será necessário ter mais cuidado no que se diz ou nas brincadeiras que se faz. Há que encontrar um equilíbrio.
Se estiverem precavidos é mais fácil.
Quanto maior o grupo, mais dinâmicas existem e mais complicado se torna a gestão. É necessário estar atento a tudo isso.
Falando da experiência na Seleção de futsal, quais foram os maiores desafios que encontrou durante uma fase final?
Gerir a forma como os jogadores analisam o que aconteceu, especialmente quando o jogo não corre como imaginam. Jogos menos conseguidos acontecem. Há uma série de estratégias para a análise e gestão do jogo. Somos humanos e a nossa competição faz com que cometamos erros de quando em vez. Vamos falhar, mas como lidamos com isso? Vou ficar a pensar e não sair dali ou ver o que preciso de fazer para não errar novamente? Esse é um dos maiores desafios, além da fadiga.
Podem existir erros que já tenham sido cometidos antes ou frustrações acumuladas nos clubes que acabam por ser transportados para a Seleção.
Os jogadores podem relembrar o que aconteceu anteriormente. É muito simples dizermos que são competições diferentes, mas na prática não é assim tão fácil. São as mesmas pessoas e por isso, é importante o conhecimento prévio de cada um. Cada ser humano é diferente e lida de forma distinta com coisas diferentes. O erro pode lembrar outro e provocar uma avalanche de sentimentos. Essa gestão tem de ser muito individualizada.
Como é que funciona a dinâmica entre o trabalho de campo e o trabalho do psicólogo numa grande competição?
O trabalho é permanente (risos). Os jogadores procuram-me, mas funciona das duas maneiras. Às vezes dava uma palavra durante o treino por exemplo.
Há outro ponto que muitas vezes é descurado que é a ausência das famílias. Tendo como base a experiência com a seleção nacional de futsal, como se lida com a saudade?
É importante os atletas sentirem o apoio das famílias. O estágio da seleção de futsal juntamente com o Mundial durou cerca de 60 dias e enquanto estivemos em Portugal, os jogadores foram a casa nas folgas. Depois não foi assim e aí torna-se importante alguém ligado à psicologia acompanhá-los. A vida continua, as famílias estão sujeitas a doenças, a acontecimentos positivos e negativos e isso tudo impacta no rendimento dos jogadores. As coisas não têm tempo para acontecer e os atletas são pessoas normais que estão submetidos ao mesmo que os outros. É preciso haver esse cuidado e acompanhamento permanente.
Há pessoas, certamente os jogadores não são diferentes, que precisam de contacto físico. Como se ultrapassa isso durante um Europeu?
O foco deve ser: vamos fazer este sacríficio em função de um objetivo maior como chegar o mais longe possível no Euro. Cada vez mais há essa consciência por parte das famílias. Há esse compromisso da parte dos familiares, é o preço a pagar por outras coisas. Geralmente, diz-se que no desporto é preciso de abdicar de muita coisa. Considero que é um caminho alternativo, uma vez que os jogadores não têm as mesmas coisas que teriam se não tivessem essa profissão. No entanto, têm coisas que os restantes não têm.
Regra geral só lembramos os aspetos positivos da vida de um futebolista.
Sim. O bem-estar das famílias contribui para que os atletas estejam bem. Há cosias que as famílias ‘escondem’ quando dá até ao fim das competições porque sabem que os jogadores têm de estar bem. Se há um problema familiar e der para camuflar… lembro-me de situações em que isso aconteceu para que o rendimento de um atleta não fosse comprometido.
Normalmente temos a sensação de que o treino mental é só quando acontece algo mau, não concorda?
Sim, concordo. Mas deve ser um trabalho de prevenção. Claro que, por vezes, é importante dar estratégias para remediar o que aconteceu. Mas o trabalho do psicólogo é mais de prevenção no sentido de evitar que certas coisas aconteçam. Se os jogadores tiveram estratégias para lidar com os erros, provavelmente não se vão sentir tão mal com isso e vão superar a situação mais rápido. É certo que vão surgir dúvidas, baixas de forma, mas se houver ferramentas para lidar com isso, o rendimento não será afetado de forma tão negativa e os jogadores não vão baixar tanto. Podem existir oscilações, mas não serão tão grandes como seriam se não tivéssemos essas estratégias mentais.