A coagulopatia induzida pela sepse (SIC, em inglês – Sepse Induced Coagulopathy) é caracterizada por uma inflamação sistêmica com ativação do sistema de coagulação, levando à trombose da microvasculatura, diminuição da perfusão sistêmica e, subsequentemente, disfunção orgânica. Essa condição é responsável por um aumento de 100% na mortalidade de pacientes sépticos. Na literatura médica, a SIC é considerada uma fase anterior ao desenvolvimento da Coagulação Vascular Intradisseminada (CIVD), condição com alta morbimortalidade entre os pacientes com sepse.
Na CIVD, observamos um quadro mais acentuado de consumo de fibrinogênio e outros fatores de coagulação, além de plaquetopenia de consumo, levando o paciente a quadros clínicos trombóticos associados ou não a diátese hemorrágica. A SIC cursa com alterações fisiopatológicas semelhantes, porém na grande maioria dos casos, precede a descompensação do paciente para um quadro de CIVD.
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Fisiopatologia
A coagulopatia induzida pela sepse é desencadeada por uma interação complexa de fatores que envolvem o sistema imune inato e os fatores de coagulação, a partir do dano endotelial, exposição a antígenos próprios dos patógenos e mediadores inflamatórios produzidos pelas células lesadas do hospedeiro.
O processo trombótico inicia-se pelo dano às células endoteliais (CE) ou por ativação e consumo de monócitos e plaquetas com a seguinte exposição do fator tecidual (FT) presente nessas células. A interação do fator VII com o FT, na famosa via extrínseca do sistema de coagulação leva, em última instância, à formação do complexo de protrombinase (FXa + FVa). Este cliva o fator II em fator II ativado (protrombina em trombina) e amplifica a geração de trombos a partir da clivagem do fator VIII e do favor de Von Willebrand, responsáveis pela maior agregação plaquetária.
O fator XII, a partir do contato com componentes de superfície aniônicos (carga negativa), amplifica o processo com a ativação da via intrínseca, ou via da kalikreína.
Por sua vez, os neutrófilos atraídos por citocinas pró-inflamatórias para os locais de dano tecidual e quimiotaxia de células fagocitárias formam verdadeiras redes extracelulares que consistem em uma fusão de micropartículas de DNA, histonas, mieloperoxidase e outras proteínas antimicrobianas. Essas redes facilitam a ativação do fator XII e a agregação plaquetária, sendo consideradas importantes estruturas de sinalização pró-coagulante e auxiliadoras na formação de trombina.
Os patógenos (vírus, bactérias, fungos) apresentam padrões moleculares de membrana, intracitoplasmáticos ou ainda de origem nuclear que funcionam como gatilhos da resposta inflamatória. Esses antígenos são conhecidos na literatura como PAMPs (em inglês, Pathogen-associated molecular patterns). Os PAMPs são reconhecidos por células apresentadoras de antígenos através de receptores TOLL-like que desencadeiam a resposta imune inflamatória e ativação da cascata de coagulação. Os lipopolissacarídeos (LPS) da membrana de bactérias são os mais conhecidos antígenos incluídos nos PAMPs e ativam a geração de trombina e agregação plaquetária pela interação com receptores TOLL-like do tipo 4.
Por outro lado, temos os DAMPS (em inglês, Danger-associated molecular patterns), que consistem em biomoléculas endógenas liberadas pelas células estressadas do hospedeiro e que ativam as células do sistema imune inato. Tais moléculas são reconhecidas como mediadoras de desregulação imune e sinalização pró-trombótica na sepse. Podemos incluir nessa categoria as histonas, ácidos nucléicos livres no plasma (cfDNA e ex-RNA) e as proteínas denominas HMGB-1 (em inglês, high mobility group box-1).
Apesar das observações de aumentos nos níveis séricos de histonas e HMGB-1 modelos murinos e pacientes sépticos, o impacto direto na ativação do sistema de coagulação levando a anormalidades hemostáticas ainda deve ser mais bem elucidado. Em uma coorte de 201 pacientes, níveis séricos elevados de HMGB-1 foram correlacionados com piores desfechos em termos de falência multi-orgânica e piora da coagulopatia. No entanto, o uso clínico desses marcadores ainda não está bem estabelecido.
Ativação plaquetária, disfunção endotelial e prejuízo de mecanismos antitrombóticos
A ativação plaquetária acontece mediada principalmente por sinalização intra e extra-celular associada aos receptores toll-like 4, contato com células efetoras e apresentadoras do sistema imune inato (monócitos e neutrófilos principalmente) e interação com CE ativadas/lesadas, FVW e trombina. Aproximadamente 49% dos pacientes diagnosticados com SIC em estudos observacionais apresentaram uma atividade de ADAMTS-13 seriamente reduzida. Essa desintegrina e metalloproteinase é responsável pela clivagem dos multímeros de Von Willebrand, e sua inatividade leva a uma maior disponibilidade desses componentes de adesão e maior formação trombótica. Algo semelhante pode ser visto na fisiopatologia da PTT.
Sem dúvidas as lesões endoteliais são um grande marco da SIC e participam da amplificação da resposta trombótica. As propriedades anti-trombóticas das CE íntegras incluem a liberação do inibidor da via do fator tecidual, óxido nítrico, prostaglandinas, glicosaminoglicanos e trombomodulina (TM). O aumento da permeabilidade vascular causado pela atividade inflamatória exacerbada da sepse reduz o volume intravascular, levando à hipoperfusão e hipóxia, com liberação de espécies reativas de oxigênio e induzido dano oxidativo tecidual.
Os principais anticoagulantes endógenos afetados por esse mecanismo são a TM e a antitrombina III (ATIII). Enquanto a TM, expressada pelas CE, participa no processo de ativação da proteína C, uma proteína de fabricação endógena com ação anticoagulante, a ATIII é produzida no fígado e possui atividade inibitória da trombina e do fator Xa (FXa).
Características clínico-laboratoriais
Como mencionado anteriormente no texto, a SIC é considerada uma CIVD “fechada”, ou seja, um passo anterior na cadeia evolutiva de alterações fisiopatológicas e, portanto, de manifestações clínicas. A CIVD pode se apresentar com dois fenótipos principais: trombótico ou hemorrágico. Uma sobreposição dos dois também é observada. Tipicamente, ambos os fenótipos cursam com plaquetopenia de consumo (podendo chegar a níveis inferiores a 50 x 109 /L), elevação do D-dímero e consumo de fibrinogênio.
Na SIC, a plaquetopenia costuma ser o sinal laboratorial mais sensível e o primeiro a se instalar, porém cursando com níveis plasmáticos normais ou discretamente elevados de fibrinogênio e D-dímero. Em ambos os espectros de doença, a plaquetopenia e o consumo de fibrinogênio foram associados a maior mortalidade e piores desfechos gerais. Portanto, as manifestações clínicas podem ainda ser frustras e muito semelhantes às manifestações do quadro séptico em si, uma vez que a coagulopatia de consumo da CIVD ainda não se instalou, estando o processo mais associado à lesão endotelial.
O diagnóstico da SIC visa antecipar o desenvolvimento do paciente para o quadro de CIVD, planejando medidas tempo-efetivas. Infelizmente, o manejo específico das alterações observadas na SIC e relatadas previamente ainda carece de comprovação científica e evidências adequadas como será comentado no tópico a seguir.
Para o diagnóstico, consideramos o uso de dois escores clínicos em conjunto, ambos elaborados pela Sociedade Internacional de Trombose e Hemostasia (ISTH, em inglês, International Society of Thrombosis and Hemostasis): O ISTH-SIC e o ISTH-DIC (em inglês, Disseminated Intravascular Coagulopathy).
Escore clínico | ISTH-DIC | ISTH-SIC |
Critérios | ||
Escore SOFA | 1: 1 ponto
≥2: 2 pontos |
|
Contagem plaquetária (x109/L) | ≤100: 1 ponto
≤ 50: 2 pontos |
< 150: 1 ponto
< 100: 2 pontos |
D-dímero (µg/mL) | ≥1: 2 pontos
>2: 3 pontos |
|
Fibrinogênio (mg/dL) | ≤100: 1 ponto | |
Prolongamento do TP (seg) | ≥3: 1 ponto
≥6: 2 pontos |
|
Razão TP/RNI | >1,2: 1 ponto
> 1,4: 2 pontos |
|
Diagnóstico de CIVD/SIC | ≥5 pontos | ≥4 pontos |
Legenda: TP, Tempo de protrombina; RNI, razão normatizada internacional; CVID, coagulação intravascular disseminada; SIC, coagulopatia induzida pela sepse.
Marcadores inflamatórios têm sido investigados para caracterização mais precoce da SIC, incluindo a procalcitonina, o endocan (avaliação da função endotelial), o fator de crescimento endotelial e a razão IL-6/IL-10. No entanto, mais estudos são necessários para se estabelecer o impacto clínico dessas medidas.
A tromboelastografia (TEG) e a tromboelastometria rotacional (ROTEM) são também métodos diagnósticos utilizados para caracterização da CIVD, levando-se em consideração a firmeza máxima do coágulo (MCF, em inglês, maximum clott firmness). Valores < 64mm para o MCF são preditores independentes de evolução para CIVD. Ainda que na prática, o método seja realizado, a força de evidência e o grau de recomendação são baixos devido à variância observada entre os valores médios para diagnóstico na população. Não podemos estabelecer uma recomendação para tanto.
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Manejo e tratamento da coagulopatia induzida pela sepse
Como mencionado anteriormente, existem poucas recomendações específicas para o manejo da SIC. Quando diante de um paciente com SIC/CIVD e fenótipo hemorrágico, as recomendações incluem: transfusão de concentrado de hemácias em caso de anemia sintomática ou < 7 g/dL em pacientes críticos (grau de recomendação forte), transfusão de plasma em caso de sangramento ativo ou necessidade de procedimentos invasivos (grau de recomendação fraco) e transfusão de plaquetas se níveis < 50×109/L (grau de recomendação fraco).
Nos casos de fenótipo trombótico, o uso de heparina profilática ou terapêutica é recomendado. A maioria dos guidelines, portanto, recomenda o uso de heparina em pacientes sem indicativos clínicos de fenótipo hemorrágico, com alguns estudos clínicos randomizados sustentando o benefício da anticoagulação em termos de mortalidade.
A reposição de fatores específicos com ATIII e TM também tem sido alvo de estudos clínicos, porém sem recomendações pelos guidelines até o momento devido aos resultados inconsistentes indicando benefício em termos de mortalidade ou prevenção de progressão de SIC para CIVD.
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Autor
Médico pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) ⦁ Residência em Clínica Médica e Hematologia pela UFMG ⦁ Título de Especialista em Hematologia e Hemoterapia pela Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (ABHH) ⦁ Membro da equipe de Transplante de Medula Óssea do Hospital Monte Sinai – Juiz de Fora(MG)