Síndrome hepatorrenal (SHR): o que todo clínico precisa saber?

A injúria renal aguda (IRA) é um um dos principais marcadores de mau prognósticos entre os hepatopatas admitidos no ambiente hospitalar, merecendo vigilância ativa com o intuito de antecipar o seu diagnóstico e viabilizar a instituição de intervenções pertinentes em tempo hábil.  

Leia também: Abscessos Hepáticos Piogênicos: fatores prognósticos

Um erro comum na prática cotidiana é considerar a síndrome hepatorrenal (SHR) como a principal hipótese diagnóstica diante de qualquer incremento da creatinina sérica em portadores de doença hepática crônica.   

Mais do que isso, frisamos que nem toda ascite com GASA elevado (≥ 1,1 g/dL) tem na hipertensão portal o seu mecanismo prioritário. Destacamos aqui a ascite cardiogênica, com elevação de proteínas totais no líquido ascítico (> 2,5 g/dL) e acompanhada por síndrome de insuficiência cardíaca (IC) direita.

Nesse cenário, o julgamento clínico equivocado privará o indivíduo das terapias adequadas à IC, como diureticoterapia e vasodilatação, ao desencadear um tratamento diametralmente oposto pautado em desprescrição de diuréticos e promoção da expansão volêmica e terapia vasoconstritora, com resultados potencialmente catastróficos.   

Partiremos, portanto, da premissa que estamos considerando o diagnóstico de SHR no contexto adequado: doença hepática crônica avançada descompensada (DHCAd), com hipertensão portal clinicamente significativa (HPCS) e ascite, especialmente quando acompanhada por hiponatremia e disfunção circulatória do cirrótico, cenário em que o desenvolvimento de SHR se dá a uma taxa anual de 20%.  

Em primeiro momento, gostaríamos de rememorar os critérios diagnósticos e o estadiamento da IRA preconizados pelo Clube Internacional da Ascite (ICA-AKI) e inspirados na famosa classificação da KDIGO:   

Critérios diagnósticos da SHR-IRA (antiga SHR do tipo 1):  

  • Aumento da creatinina sérica ≥ 0,3 mg/dL em relação à basal em um período de 48h;  
  • Aumento presumido da creatinina sérica ≥ 50% em 7 dias em relação à basal do último trimestre. 

A deterioração da função renal que não atenda aos critérios acima elencados, com elevação mais insidiosa da creatinina sérica, reflete a SHR não-IRA (antiga SHR do tipo 2), em que se espera taxa de filtração glomerular estimada (TFGe) inferior a 60 mL/min/1,73m² por um período superior a 90 dias.   

Estágios da IRA em hepatopatas 
1  2  3 
  • ↑ Cr ≥ 0,3 mg/dL, sem ultrapassar 2 vezes a Cr basal.  
  • ↑ Cr entre 2 e 3 vezes a Cr basal.  
  • ↑ Cr acima de 3 vezes a Cr basal ou; 
  • ↑ Cr > 4 mg/dL com aumento agudo ≥ 0,3 mg/dL ou; 
  • Demanda por TRS.  

IRA: Injúria renal aguda; Cr: Creatinina sérica; TRS: Terapia renal substitutiva; ↑: Aumento.  

Uma vez diagnosticada e estadiada a IRA, é hora de instituirmos algumas medidas universais:  

  • Restabelecer a euvolemia por meio da reposição de cristaloides para os pacientes hipovolêmicos, com preferência para o Ringer lactato; 
  • Evitar, reduzir ou suspender o uso de diuréticos, beta-bloqueadores, drogas anti-hipertensivas e fármacos potencialmente nefrotóxicos, como AINEs, aminoglicosídeos e meios de contraste iodados; 
  • Tratar as complicações concomitantes, como infecções e hemorragias digestivas. 

No estágio 1 da IRA a expansão com albumina deve ser considerada caso não ocorra a normalização da creatinina em 1 ou 2 dias após o adequado manejo dos fatores de risco anteriormente elencados. Já na IRA estágio 2 e 3, a instituição de albumina deve ser imediata, em concomitância com a estratégia de mitigação dos fatores de risco. 

A infusão de albumina humana a 20% segue o protocolo de 1 g/kg/dia por 48h, com teto de 100 g/dia. Lembramos que cada frasco-ampola de 50 mL de albumina humana a 20%, apresentação disponível no Brasil, contém 10 g de albumina (1 frasco para cada 10 kg de peso). As principais complicações da infusão de albumina residem na hipervolemia, motivo pelo qual se deve monitorizar o surgimento de dispneia, turgência venosa jugular, hipertensão arterial e cefaleia durante a sua utilização.   

Cabe enfatizar que, operacionalmente, enquanto não se avalia a resposta da creatinina sérica após 48 horas de expansão com albumina, não se pode estabelecer o diagnóstico de SHR. A resposta completa da IRA à expansão volêmica, definida pela aproximação da creatinina sérica à basal em ao menos 0,3 mg/dL, portanto, exclui o diagnóstico de SHR.   

Na ausência de resposta completa da IRA à expansão com albumina por 48 horas, tendo-se excluído as principais causas renais (necrose tubular aguda, nefrite intersticial aguda) e pós-renais, temos estabelecido o diagnóstico de trabalho de SHR e podemos, enfim, instituir a terapia vasoconstritora esplâncnica. Entretanto, sempre que a creatinina ultrapassar a marca de 1,5 mg/dL, a terapia vasoconstritora pode ser considerada em concomitância à fase de expansão volêmica com albumina  

síndrome hepatorrenal

O que esperamos na propedêutica renal na SHR? 

  • Ausência de sinais da nefropatia estrutura: 
  • Proteinúria < 500 mg/dia,  
  • Hemácias < 50/campo; 
  • Ultrassonografia de rins e vias urinárias isenta de anormalidades. 
  • Débito urinário < 500 mL/dia. 
  • Densidade urinária > 1.105. 
  • Sódio urinário < 20 mEq/L.  
  • Fração de excreção: 
  • Sódio < 1%; 
  • Ácido úrico < 10%; 
  • Ureia < 35%.  

O comportamento fenotípico da SHR é o mesmo do esperado na IRA pré-renal. Há avidez pela reabsorção de sódio e água livre, expressas por oligúria, diurese concentrada, redução do conteúdo urinário de sódio e, por consequência, redução da fração de excreção do sódio, ácido úrico e ureia. 

Veja ainda: Pegozafermina: tratamento promissor para esteato-hepatite não alcoólica

A alteração arquitetural hepática inerente à DHCA, substrato da hipertensão portal, promove a vasodilatação esplâncnica e sistêmica. Nesse cenário de underfilling, a redução da pressão de perfusão renal gera a ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) que, por conseguinte, deflagra a vasoconstrição renal. A SHR é resultado, então, de uma resposta fisiológica mal adaptativa.   

O agente farmacológico de primeira linha na SHR é a terlipressina, um análogo da vasopressina que exerce a sua atividade vasoconstritora mediada pelos receptores V1 e V2.   

O estudo de fase 3 CONFIRM (N = 300 pacientes) identificou que o desfecho combinado de creatinina ≤ 1,5 mg/dL em 14 dias e sobrevida livre de terapia renal substitutiva (TRS) em 10 dias foi alcançado em 32% dos indivíduos tratados com terlipressina, comparado a 17% no grupo placebo (P = 0,006), às custas de incremento da mortalidade por insuficiência respiratória em 90 dias: 11% no grupo terlipressina vs 2% no grupo placebo. Outros eventos adversos incluíram a dor abdominal, náuseas e diarreia, bem como eventos isquêmicos cardíacos, periféricos e mesentéricos. A infusão contínua, em comparação ao bolus intermitente, atenua os efeitos adversos relacionados à terlipressina.  

Em uma meta-análise envolvendo 974 pacientes com média de MELD de 33 pontos e tempo mediano de seguimento de 100 dias, o uso da terlipressina, em relação ao placebo, se associou ao aumento significativo da reversão de SHR (RR 2,08 – IC 95%: 1,51 – 2,86 – P < 0,001) e tendência de menor demanda por TRS (RR 0,61 – IC 95%: 0,36 – 1,02 – P = 0,06). Entretanto, não houve impacto na sobrevida em 90 dias (RR 1,09 – IC 95%: 0,84 – 1,43 – P = 0,52).   

Como utilizar a Terlipressina? 

  • O seu uso é compatível com infusão em acessos venosos periféricos em enfermarias.  
  • A dose em bolus deve ser infundida em 2 minutos, inicialmente com 0,5 mg a cada 6 horas por 72 horas. 
  • A creatinina sérica é reavaliada no 4° dia, quando ajustes posológicos podem ser considerados diante de ausência de resposta, não ultrapassando a dose máxima de 2 mg de 4/4h (12 mg/dia).  
  • A infusão contínua, por sua vez, se correlaciona a menor incidência de eventos adversos, iniciando-se com 2 mg/dia, com aumentos graduais a cada 24-48h diante de ausência de resposta, não ultrapassando a dose máxima de 12 mg/dia.  
  • A resposta à terlipressina é definida por redução da creatinina sérica para valores < 1,5 mg/dL ou aproximação ao valor basal em pelo menos 0,3 mg/dL em um período máximo de 14 dias.  
  • A estagnação da creatinina sérica com o emprego de doses máximas toleradas por 4 dias deve motivar a suspensão do tratamento por ineficácia.  

A principal alternativa à terlipressina no Brasil é a norepinefrina, um agonista alfa-adrenérgico, utilizado especialmente nos pacientes críticos com disfunção circulatória concomitante. A sua utilização por períodos prolongados demanda a presença de um cateter venoso central, com infusão iniciada a 0,05 mcg/kg/h, com titulação de 0,01 mcg/kg/h a cada 5 minutos até alcançar o alvo de pressão arterial média (acima de 10 mmHg da PAM basal) ou débito urinário.   

O desenvolvimento da SHR, conforme anteriormente mencionado, é um marcador de mau prognóstico na DHCA, relacionando-se a sobrevida média de 12 semanas na ausência de tratamento específico. Logo, a partir de sua constatação, deve-se checar a pertinência da terapia curativa definitiva: o transplante hepático. É interessante ressaltar que o adequado tratamento da SHR se correlaciona com melhora dos desfechos pós-transplante hepático.  

O transplante hepático sendo a única terapia curativa definitiva na SHR, o que fazer com os pacientes inelegíveis?

Nesse cenário, é importante reconhecer que o desenvolvimento da SHR é uma das assinaturas da doença hepática crônica avançada, sinalizando para a equipe assistente a necessidade de se evitar medidas fúteis e priorizar as condutas que promovam o conforto e bem-estar do indivíduo sob a nossa responsabilidade. 

Saiba mais: Choque séptico na cirrose: qual deve ser o alvo de pressão arterial média?

Mensagens práticas 

  • A injúria renal aguda (IRA) é um marcador de mau prognóstico entre os hepatopatas.  
  • A síndrome hepatorrenal (SHR) é apenas um entre os vários diagnósticos etiológicos da IRA em hepatopatas. Devemos considerar no diagnóstico diferencial a síndrome cardiorrenal, necrose tubular aguda, nefrite intersticial aguda, glomerulopatias e nefropatia obstrutiva.  
  • A SHR se instala sobre o terreno da doença hepática crônica avançada descompensada (DHCAd), com hipertensão portal clinicamente significativa (HPCS) e expressa por ascite, hiponatremia e disfunção circulatória do cirrótico.  
  • As medidas terapêuticas universais diante da IRA em cirróticos tem como objetivo a euvolemia e evitar o emprego de drogas potencialmente nefrotóxicas, como diuréticos, anti-hipertensivos, AINEs, aminoglicosídeos e contrastes iodados.  
  • A albumina humana endovenosa é o alicerce do tratamento da IRA em cirróticos, especialmente nos estágios 2 e 3, embora seja preconizada precocemente para os pacientes com IRA estágio 1 com creatinina sérica superior a 1,5 mg/dL.  
  • Após as primeiras 48 horas de expansão volêmica com albumina, na ausência de resposta da IRA, expressa por creatinina sérica superior a 1,5 mg/dL ou não aproximação em ao menos 0,3 mg/dL em relação à basal, está indicada a terapia vasoconstritora esplâncnica, sendo a primeira opção a terlipressina.  
  • O momento do diagnóstico da SHR é oportuno para a revisão da pertinência do transplante hepático. Caso seja viável, deve-se prosseguir com os trâmites de alocação em fila. Na inviabilidade, a prioridade é a promoção de medidas pautadas no conforto, evitando-se a distanásia.  

Selecione o motivo:

Errado

Incompleto

Desatualizado

Confuso

Outros

Sucesso!

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Avaliar artigo

Dê sua nota para esse conteúdo.

Você avaliou esse artigo

Sua avaliação foi registrada com sucesso.

Autor

Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2013. Residência em Clínica Médica (2016) e Gastroenterologia (2018) pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Residência em Endoscopia digestiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2019). Médico na Unidade de Atenção à Urgência e Emergência do HC-UFMG e gastroenterologista no Hospital Monte Sinai (Juiz de Fora/MG).

Referências bibliográficas:
Ícone de seta para baixo

  • Loftus, M. e col. Improving the Management of Hepatorenal Syndrome–Acute Kidney Injury Using an Updated Guidance and a New Treatment Paradigm. Gastroenterology & Hepatology, Volume 19, Issue 9, September 2023. PMID: 37771795. 


LEAVE A REPLY

Please enter your comment!
Please enter your name here

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

- Advertisement -spot_img

ÚLTIMAS NOTÍCIAS