A doença hepática esteatótica associada à disfunção metabólica (MASLD) assumiu protagonismo mundial entre as etiologias de hepatopatias crônicas, com prevalência de 55% em diabéticos e 75% em obesos. Entre os seus principais riscos, destacamos a doença hepática crônica avançada (DHCA), carcinoma hepatocelular (CHC) e aumento do risco cardiovascular.
Um subgrupo dos portadores de MASLD desenvolve uma forma progressiva de lesão hepatocelular, denominada esteato-hepatite associada à disfunção metabólica (MASH). A MASH caracteriza-se por esteatose envolvendo mais do que 5% dos hepatócitos, associada a sua balonização e presença de infiltrados inflamatórios lobulares, capazes de induzir à fibrose hepática.
A fibrose hepática, principal preditora de desfechos hepáticos e cardiovasculares, é classificada por Kleiner em 4 estágios: 0 (fibrose ausente), 1 (fibrose centrolobular), 2 (fibrose centrolobular e periportal), 3 (fibrose em ponte) e 4 (cirrose).
A principal estratégia para o enfrentamento da MASH é o emagrecimento supervisionado, com alvo de eliminação de pelo 10% do peso corporal total. A farmacoterapia, embora amplamente testada nos últimos anos, não conta com liberação específica pelas principais agências regulatórias. Entretanto, estudos recentes com a semaglutida e tirzepatida, capazes de induzir à perda ponderal entre 12-17%, demonstram eficácia na resolução da MASH, embora sem evidências de melhora da fibrose hepática.
A cirurgia bariátrica-metabólica (CBM), com potencial de emagrecimento de 30%, tem demonstrado, em estudos observacionais, grande eficácia em melhorar os aspectos inflamatórios da histologia hepática.
O estudo BRAVES, que trataremos de agora em diante, foi publicado no periódico The Lancet em abril/2023, destacando-se por ser o primeiro estudo randomizado controlado (RCT) que avalia o impacto da CBM na MASH histologicamente confirmada em comparação às intervenções não farmacológicas e medicamentosas.
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Cirurgia bariátrica-metabólica é uma boa alternativa para MASH?
Métodos
Trata-se de um RCT multicêntrico, envolvendo três hospitais de Roma (Itália), conduzido entre abril/2019 e junho/2021 e com seguimento de 52 semanas.
Foram incluídos pacientes obesos, com índice de massa corporal (IMC) entre 30 e 55 kg/m², estratificados como de alto risco para fibrose hepática pelo NAFLD fibrosis score.
Foram excluídos os pacientes acometidos por eventos cardiovasculares maiores nos últimos 6 meses, portadores de DHCA e com etiologias concorrentes de hepatopatia: uso abusivo de álcool (acima de 20 e 30 g/dia para mulheres e homens, respectivamente), doença de Wilson e exposição medicamentosa (amiodarona, metotrexato, tamoxifeno e corticoides).
Todos os pacientes foram submetidos à biópsia hepática ecoguiada à alocação e em um ano.
Os pacientes foram distribuídos em três grupos:
- Mudanças de estilo de vida e farmacoterapia: as intervenções se caracterizam por dieta hipocalórica, definida por dois terços do gasto calórico estimado pela equação de Harris-Benedict. A atividade física se pautou na meta de 10.000 passos diários, associada à prática de exercícios aeróbicos de moderada intensidade por 2 a 3 horas semanais. Todos os pacientes receberam vitamina E 800 UI/dia e, os diabéticos, utilizaram a pioglitazona e liraglutida (1,8 mg/dia).
- Derivação gástrica em Y de Roux: confecção de reservatório gástrico com a capacidade de 30 mL e desvio do trânsito intestinal por meio de gastrojejunostomia distando 75 cm do ligamento de Treitz e alça biliar distando 100 cm da anastomose gastroenteral.
- Gastrectomia vertical: confecção de reservatório gástrico com a capacidade entre 60 e 80 mL.
O desfecho primário foi definido como resolução histológica da MASH (grau 0 ou 1 de inflamação, na ausência de balonização de hepatócitos), sem implicar em agravamento da fibrose em 1 ano. O desfecho secundário foi definido como resolução da fibrose, sem implicar em agravamento da MASH em 1 ano.
As análises estatísticas foram realizadas por intenção de tratamento e análises por protocolo.
Resultados
Entre os 431 pacientes rastreados, 288 foram incluídos, entre os quais 236 (82%) completaram o estudo.
A média de idade foi de 47 anos, com predomínio do sexo masculino (56% Vs 44%), com representação exclusiva de caucasianos, com peso médio de 122 kg e IMC de 42 kg/m².
O escore médio de atividade de MASH foi de 4,2, sendo que a distribuição entre os graus de fibrose F0, F1, F2 e F3 foi de 1%, 48%, 40% e 11%, respectivamente.
Os participantes foram distribuídos na proporção de 1:1:1 entre os grupos A, B e C, cada braço contendo 96 participantes. Os grupos foram homogêneos, por exceção do peso, IMC, hemoglobina glicada (HBA1c), maiores no grupo B. A concordância total entre os patologistas em relação à determinação do escore de atividade de NAFLD e estágio da fibrose foi de 35%. Considerando-se cada um dos elementos de avaliação, a concordância foi de 95% para balonização, 82% para inflamação, 60% para esteatose e 69% para fibrose.
O desfecho primário foi alcançado em 16% dos pacientes do grupo A, em comparação a 56% no grupo B e 57% no grupo C (p < 0,0001), tendo-se observado um incremento linear da resolução da MASH com o emagrecimento de até 20% do peso corporal total, a partir de quando a perda de peso adicional passou a exercer pequena influência.
Na análise estratificada, observou-se maior probabilidade de se alcançar o desfecho primário nos seguintes grupos: mulheres (RR 3,15), não-diabéticos (RR 3,49) e indivíduos MASH avançada.
Em relação ao desfecho secundário, a taxa de melhora da fibrose em ao menos um estágio, sem agravar a MASH, foi de 23%, 37% e 39% (p = 0,034); enquanto o percentual de regressão da fibrose para F0 foi de 3%, 9% e 12%; e de progressão da fibrose foi de 16%, 8% e 8% (p = 0,13), para os grupos A, B e C, respectivamente.
Na análise post-hoc, motivada pela necessidade de atender às novas exigências do FDA para os estudos envolvendo MASH, foram selecionados os pacientes com escore de atividade de NAFLD de ao menos 4 pontos, com fibrose estágio 2 ou 3. O desfecho primário foi observado em 16%, 71% e 56% (p < 0,001); enquanto o desfecho secundário foi alcançado em 41%, 80% e 70% (p < 0,001) nos grupos A, B e C, respectivamente.
Não foram observadas complicações ameaçadoras à vida ou mortes no presente estudo. Complicações graves foram observadas em 6% dos pacientes submetidos à CBM, mas todas tratadas clínica ou endoscopicamente, sem a necessidade de reabordagens cirúrgicas.
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Conclusão e Mensagens práticas
- O estudo BRAVES é o primeiro estudo controlado-randomizado (RCT) que avalia o impacto da cirurgia bariátrica-metabólica (CBM) na esteato-hepatite associada à disfunção metabólica (MASH) histologicamente confirmada em comparação às intervenções não-farmacológicas e medicamentosas.
- A cirurgia bariátrica-metabólica é superior ao grupo controle em reduzir a atividade inflamatória na MASH e melhorar o grau de fibrose hepática.
- A presença de MASH deve ser considerada como um fator de priorização de CBM para indivíduos com obesidade, independentemente da presença de diabetes.
- As principais limitações do estudo foram a representação exclusiva da população caucasiana de uma única cidade da Europa; a inadequação dos critérios de inclusão às novas recomendações do FDA para os estudos com MASH; e a baixa taxa de concordância entre os patologistas em relação à gradação da atividade e grau de fibrose da MASLD.
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Autor
Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2013. Residência em Clínica Médica (2016) e Gastroenterologia (2018) pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Residência em Endoscopia digestiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2019). Médico na Unidade de Atenção à Urgência e Emergência do HC-UFMG e gastroenterologista no Hospital Monte Sinai (Juiz de Fora/MG).
- Varrastro, O., e col. Bariatric–metabolic surgery versus lifestyle intervention plus best medic