A ventilação mecânica invasiva (VM) é uma ferramenta suportiva indicada diante da predição de rápida deterioração clínica ou incapacidade de se manter adequada ventilação, oxigenação, proteção ou perviedade de vias aéreas. Entretanto, a VM predispõe a complicações potencialmente fatais, de forma que, uma vez instituída, inicia-se uma corrida contra o tempo para sanar a condição de base e viabilizar a pronta extubação.
Lembramos que há situações em que a VM pode ser evitada pelo emprego da ventilação não invasiva (VNI), como no edema agudo de pulmão e exacerbação da DPOC; ou por intervenções pontuais em indivíduos com rebaixamento do nível de consciência, a exemplo da administração de lactulose na encefalopatia hepática, glicose na reversão de sintomas neuroglicopênicos ou naloxona e flumazenil nas intoxicações por opioides e benzodiazepínicos, respectivamente.
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Em 2013, o CDC estabeleceu a definição dos Eventos Associados ao Ventilador (EAV), um termo com abrangência superior à da tradicional Pneumonia Associada à Ventilação Mecânica (PAVM) e focado em complicações graves o suficiente para gerar prejuízo da troca gasosa. Logo, um EAV é aquele que demanda um incremento da fração inspirada de oxigênio (FIO2) ≥ 20% ou da pressão expiratória final positiva (PEEP) ≥ 3 cm H2O após um período de estabilidade em VM de pelo menos 2 dias.
A prevalência de EAV é aproximadamente 30%, a maioria ocorrendo na primeira semana de VM, em especial entre o 5° e 6° dias, associando-se à quadruplicação da mortalidade e prolongamento do tempo de VM e de permanência em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Os EAVs amplificam a taxa de falha de extubação e de progressão para traqueostomia, além de depreciar o status-performance e onerar os sistemas de saúde.
As etiologias mais frequentes dos EAV incluem:
- Infecções (entre 33 e 50%), com destaque para as pneumonias bacterianas e virais, entre as quais a covid-19;
- Sobrecarga volêmica (até 48%), mais significativa após a ressuscitação volêmica para o tratamento de sepse em portadores de insuficiência cardíaca ou doença renal crônica;
- Síndrome do desconforto respiratório do adulto (entre 5 e 20%) relacionada principalmente a pneumonias bacterianas, virais e hemotransfusões;
- Atelectasias, especialmente no cenário pós-operatório e na vigência de obesidade, extremos de idade e comorbidades, como insuficiência cardíaca e DPOC;
- Lesões pulmonares induzidas pelo ventilador (VILI) impostas por volumes correntes suprafisiológicos que propiciam o barotrauma.
Outras etiologias menos frequentes, responsáveis por menos de 5% dos EAV, incluem as pneumonites, tromboembolismo pulmonar, pneumotórax e síndrome de compartimento abdominal.
Vale a ressalva de que o desconforto respiratório agudo evidenciado em pacientes sob regime de VM deve nos levar também à consideração de ruptura do balonete, desposicionamento do tubo orotraqueal (intubação seletiva ou posicionamento supraglótico), escapes aéreos nos circuitos da VM, redução da pressão de ar comprimido ou oxigênio fornecidos pelas fontes ao aparelho, broncoespasmo, obliteração das vias aéreas por tampões mucosos ou corpos estranhos, sedação inadequada e parâmetros desajustados do ventilador.
A ultrassonografia à beira leito (POCUS) tem ganhado destaque nos últimos anos por permitir, de forma dinâmica, a elucidação de diagnósticos diferenciais envolvendo os EAV por demonstrar elementos de sobrecarga volêmica, derrames cavitários, disfunção cardíaca, tromboembolismo pulmonar e pneumotórax.
A primeira consideração no algoritmo dos EAV é a definição sobre a suspeita de infecção, ditada pela presença de febre ou hipotermia (temperatura superior a 38°C ou inferior a 36°C), leucocitose ou leucopenia (leucócitos globais ≥ 12.000 ou ≤ 4.000/mm³) ou necessidade de introdução de novo agente antimicrobiano com duração de 4 dias ou mais.
Nesse cenário, é preciso diferenciar as infecções extrapulmonares, indicativas de Complicação Associada ao Ventilador e Relacionada à Infecção (CAV-RI); das infecções pulmonares, ao que definimos como Possível Pneumonia Associada ao Ventilador (pPAV).
O foco pulmonar primário é sugerido pelo crescimento significativo de patógenos em culturas: 105 UFC/mL em aspirados traqueais; 104 UFC/mL em lavados bronquíolo-alveolares e 103 UFC/mL em escovados protegidos; presença de secreção purulenta (contagem de neutrófilos por campo de grande aumento superior a 25 e células epiteliais escamosas inferior a 10); histologia ou teste confirmatório positivo para Legionella, Influenza, Parainfluenza, vírus sincicial respiratório, adenovírus, rinovírus, metapneumovírus e coronavírus.
Na ausência de suspeita de infecção, o preenchimento dos critérios de EAV nos levam a consideração de Condição Associada ao Ventilador (CAV).
Algoritmo dos EAVs:
- Após período de estabilidade inicial em VM de pelo menos 2 dias, houve piora abrupta da respiração ou troca gasosa (aumento da FIO2 ≥ 20% ou da PEEP ≥ 3 cm H2O)?
- Há suspeita de infecção pulmonar (pPAV)? Infecção extra-pulmonar (CAV-RI)?
- Trata-se de um EAV não-infeccioso (CAV)?
- Sobrecarga volêmica?
- ARDS?
- Atelectasia?
- VILI? Pneumotórax?
- TEP?
Os principais passos para a prevenção dos EAV incluem o emprego da estratégia de ventilação mecânica protetora, restrição de fluidos e manter o foco na extubação precoce.
Deve-se implementar, sempre que possível, os despertares diários, com interrupções programadas e adoção de planos mais superficiais de sedação. Recomenda-se precocidade na mobilização e realização dos testes de respiração espontânea. O bloqueio neuromuscular, por vezes necessário na ARDS moderada a grave, deve ser de curta duração.
A seleção de alvos apropriados de saturação de oxigênio (SpO2), entre 92 e 96% na população geral e entre 88 e 92% nos hipoxêmicos crônicos, minimiza o dano tecidual imposto pela hipóxia, bem como as atelectasias reabsortivas, estresse oxidativo e morte celular relacionados à hiperóxia. Espera-se, com a senilidade, um decaimento fisiológico da paO2, que pode ser útil na individualização dos alvos (paO2 esperada = 109 – 0,43 x idade).
A adoção de PEEP mais elevada, embora contribua para evitar as atelectasias, se exagerada, pode implicar em sobredistensão alveolar e pressão excessiva transpulmonar, limitando a excursão diafragmática e promovendo a sua atrofia.
As imunizações, em especial as relacionadas à Influenza, SARS-CoV-2 e antipneumocócica, têm potencial de minimizar a ocorrência de quadros respiratórios com necessidade de ventilação mecânica, e podem ser entendidas como medidas profiláticas eficazes na incidência dos EAV.
Veja ainda: Antimicrobianos na terapia intensiva
Mensagens práticas
- O uso da ventilação mecânica (VM) deve ser pautado no equilíbrio entre o seu potencial salvador de vidas e o risco de indução de complicações potencialmente fatais;
- As indicações de VM podem ser dissipadas em alguns cenários específicos a partir do uso da ventilação não-invasiva (VNI) ou intervenções pontuais em pacientes com rebaixamento do nível de consciência;
- Os Eventos Associados ao Ventilador (EAV) são definidos por complicações graves o suficiente para prejudicar a troca gasosa (incremento da FIO2 ≥ 20% ou da PEEP ≥ 3 cm) após um período de ao menos 2 dias de estabilidade em VM e quadruplicam a mortalidade;
- As principais etiologias dos EAV incluem as infecções, sobrecarga volêmica, síndrome do desconforto respiratório do adulto, atelectasias e lesões pulmonares induzidas pelo ventilador;
- Os EAV são subdivididos em Complicações Associadas ao Ventilador (CAV), Possível Pneumonia Associada ao Ventilador (pPAV) e Complicação Associada ao Ventilador e Relacionada à Infecção (CAV-RI);
- As principais medidas preventivas dos EAV são a extubação precoce, emprego de estratégia de VM protetora e restrição de fluidos; em um cenário mais amplo contamos com as imunizações, em especial direcionadas a Influenza, covid-19 e antipneumocócica.
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Autor
Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2013. Residência em Clínica Médica (2016) e Gastroenterologia (2018) pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Residência em Endoscopia digestiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2019). Médico na Unidade de Atenção à Urgência e Emergência do HC-UFMG e gastroenterologista no Hospital Monte Sinai (Juiz de Fora/MG).
- Ramirez-Estrada, S., Peña-Lopez, Y., Vieceli, T. e Rello J. Ventilator-associated events: From surveillance to optimizing management. Journal of Intensive Medicine, 3 (2023) 204-211, DOI: 10.1016/j.jointm.2022.09.004.