Sono de qualidade na terapia intensiva: um alvo terapêutico realista?

As Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) tradicionalmente congregam importantes inimigos do sono: ruídos, luminosidade excessiva e despertares promovidos pelas reavaliações, coletas seriadas de exames laboratoriais e intervenções terapêuticas.

Além dos fatores intrínsecos ao ambiente das UTIs, a doença crítica, a imobilidade, as comorbidades pré-existentes e as experiências negativas vivenciadas por ocasião do adoecimento competem para a gênese de dor, desconforto, dispneia, medo e ansiedade.

Os distúrbios do sono, dessa forma, são muito comuns nas UTIs, e incluem os distúrbios do ritmo circadiano, a fragmentação e mudança da arquitetura do sono, com redução de fase de ondas lentas (N3) e de movimentos oculares rápidos (REM).

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Em estudo publicado em julho/2023 no Journal of Intensive Care Medicine Heavner e colaboradores compilaram a evidência quanto à farmacoterapia da insônia nas UTIs, que abordaremos a partir de agora.

Sono de qualidade na terapia intensiva: um alvo terapêutico realista?

Métodos

Trata-se de uma revisão sistemática rápida finalizada em outubro/2022 que incluiu ensaios controlados randomizados (RCTs) e estudos de coorte envolvendo adultos com 18 anos ou mais internados em terapia intensiva, cujos desfechos primários estivessem relacionados ao sono.

A avaliação do sono foi realizada de forma subjetiva, por meio de formulários direcionados aos pacientes ou à equipe de enfermagem; ou objetiva, por meio de actinografia (uma pequena unidade, semelhante a um relógio, acoplada ao pulso com o objetivo de avaliar a atividade motora e, a partir dela, inferir sobre períodos de atividade e repouso), índice biespectral (BIS) ou polissonografia.

Resultados

Foram contemplados 16 estudos (12 RCTs e 4 coortes), publicados entre 1996 e 2022, perfazendo 2.573 pacientes, com média de idade de 62 anos, entre os quais 1.207 (46,9%) foram alocados para a intervenção farmacológica. A maioria dos estudos se direcionou à dexmedetomidina, incluindo 505 (41,8%) pacientes; ou a agonista da melatonina, incluindo 592 (49,1%) pacientes. Outros estudos se dedicaram ao propofol e benzodiazepínicos, incluindo 65 (5,4%) e 45 (3,7%) pacientes, respectivamente.

O risco de viés foi considerado baixo para os RCTs e moderado a grave para os estudos de coorte. A grande variabilidade metodológica entre os estudos impediu uma análise do agregado de dados.

A administração noturna da dexmedetomidina (0,1 mcg/kg/h), com duração média de 14,95 horas, associou-se à redução de delirium em sete dias em comparação ao placebo em UTI pós-operatória (9% Vs 23%, P < 0,0001) e a melhora subjetiva da qualidade do sono avaliada por meio da Escala de Gradação Numérica (NRS).

Em outro estudo, um grupo de pacientes críticos prioritariamente em ventilação mecânica foi submetido à infusão de dexmedetomidina (0,2 a 0,7 mcg/kg/h) com alvo de RASS de -1 a -4. Observou-se maior proporção de pacientes livres de delirium no grupo intervenção (80% Vs 54%, RR 0,44 e IC 95%: 0,23 – 0,82 – P: 0,06).

Em estudo comparativo entre o propofol (2 mg/kg/h) e flunitrazepam (0,015 mg/kg) em UTI pós-operatória, o uso do propofol se correlacionou a menor taxa de despertares (0 Vs 3, P < 0,001), despertares mais curtos (0 Vs 15 min, P < 0,001) e melhor qualidade do sono em geral, bem como melhora da arquitetura do sono a partir de dados provenientes do índice biespectral (BIS).

A melatonina, por sua vez, foi avaliada com doses entre 3 e 10 mg, administrada no período da noite. A despeito de altos picos plasmáticos de melatonina, nenhuma diferença foi observada em relação aos desfechos ligados ao sono em comparação com o placebo.

O ramelteon, um agonista potente dos receptores de melatonina, foi avaliado em 1 RCT, em dose de 8 mg à noite em pacientes em UTI adulta, entre os quais 43% se encontravam em ventilação mecânica. Foi evidenciada redução do tempo de permanência em CTI (4,56 Vs 5,86 dias – P = 0,028), redução do número de despertares (0,8 Vs 1,31/noite – P = 0,045) e maior taxa de noites de sono completo (51% Vs 30% – P = 0,04).

A dexmedetomidina associou a maior probabilidade de alcançar o estágio 2 de sono não REM (14,7%, IC 95%: 0,0 – 31,9 – P = 0,48), melhora da arquitetura, duração (213 Vs 130 min – P = 0,028) e eficiência do sono (22,4% Vs 48% – P = 0,33) — que é definida pela relação entre o período de sono efetivo e o tempo deitado em repouso no leito. Embora não tenham alcançado significância estatística, outros desfechos com tendência favorável à dexmedetomidina incluíram menor percentual de estágio N1 do sono e maior de estágio N3, com menor índice de despertares.

Estudos de coorte demonstraram que a dexmedetomidina se associou ao incremento da eficiência (11,3% para 52,3%), tempo total (1,7 para 4,7 horas) e tempo total de sono no estágio 2 (N2) (54 para 188 min). Entretanto, a arquitetura do sono permaneceu fragmentada, não tendo nenhum paciente alcançado a fase de ondas lentas (N3) ou de sono REM.

A melatonina foi avaliada por meio do BIS e não demonstrou melhora da eficiência do sono (0,39 Vs 0,26% – P = 0,09), mas se associou a melhora significativa da qualidade do sono.

Eventos adversos

A dexmedetomidina se associou à maior frequência de bradicardia (15,2%) e hipotensão (28,1%), em um comportamento dose-dependente. Dessa forma, deve ser evitada em pacientes com bloqueio atrioventricular de segundo ou terceiro grau, bradicardia pré-existente ou insuficiência cardíaca grave.

Os benzodiazepínicos se associaram à depressão respiratória em 6,6% e a eventos paradoxais como confusão, disforia e inquietação em 11,1% dos pacientes.

A melatonina e ramelteon se associaram a eventos adversos leves, como cefaleia em dois de 547 pacientes (0,03%).

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Considerações

O sono é fundamental para a recuperação da doença crítica e as noites mal dormidas na terapia intensiva cobram o seu preço, incluindo prejuízos cognitivos, alterações neurocomportamentais, delirium e síndrome pós-terapia intensiva.

A primeira linha de tratamento dos transtornos do sono na terapia intensiva é pautada nas medidas não farmacológicas. Deve-se priorizar o tratamento de transtornos crônicos do sono, alívio de sintomas que interfiram na qualidade do sono, redução da emissão noturna de ruídos, protocolos diferenciados de luminosidade diurna e noturna e emprego de técnicas de relaxamento.

O tratamento farmacológico da insônia, embora corriqueiro na prática do intensivista, é ainda controverso.

Estágios cíclicos do sono
N1 Transição entre a vigília e o sono, representa entre 5% e 10% do tempo total de sono de adultos jovens.
N2 Compreende o maior percentual de uma noite de sono (45 a 55%).
N3 Sono profundo ou de ondas lentas, responde por 10% a 20% do tempo total de sono de adultos, reduzindo com o avançar da idade.
REM Caracteriza-se pelos movimentos oculares rápidos e atonia muscular, período em que ocorrem os sonhos vívidos e que apresenta possível papel na consolidação de memórias. Responde por menos de um quarto do tempo total de sono.

Conclusão e mensagens práticas 

  • As Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) agregam múltiplos fatores perturbadores do sono. A má qualidade do sono sobreposta à doença crítica impacta negativamente os desfechos cognitivos e comportamentais, com maior taxa de delirium.
  • As intervenções não farmacológicas, apesar de não serem embasadas em evidências científicas robustas, têm grande plausibilidade e segurança, devendo ser encorajadas.
  • A abordagem farmacológica da insônia em pacientes críticos segue como um tema controverso e deve ser aprofundada em estudos futuros. Os dados mais relevantes apontam para a potencial eficácia da dexmedetomidina e agonistas da melatonina, embora não possam ser recomendados de forma rotineira.
  • O propofol impacta negativamente na arquitetura do sono e não deve ser utilizado com essa finalidade. Os benzodiazepínicos têm potencial de desencadear depressão respiratória e ampliar o risco para delirium, motivo pelo qual a sua introdução deve ser evitada na terapia intensiva.

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Autor

Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2013. Residência em Clínica Médica (2016) e Gastroenterologia (2018) pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Residência em Endoscopia digestiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2019). Médico na Unidade de Atenção à Urgência e Emergência do HC-UFMG e gastroenterologista no Hospital Monte Sinai (Juiz de Fora/MG).

Referências bibliográficas:
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  • Heavner MS, et al. A Rapid Systematic Review of Pharmacologic Sleep Promotion Modalities in the Intensive Care Unit. Journal of Intensive Care Medicine, 2023. DOI: 10.1177/08850666231186747.


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