Manejo das complicações relacionadas à cirrose hepática

A hipertensão portal (HP) ocorre devido a uma resistência ao fluxo portal ao nível dos sinusoides hepáticos devido à fibrose do órgão e alterações funcionais decorrentes à cirrose hepática.

A cirrose hepática pode ser dividida em compensada e descompensada. Na maioria das vezes, a descompensação ocorre de forma insidiosa, resultando dos estágios de gravidade da HP, culminando em ascite, hemorragia digestiva alta varicosa (HDAv) e encefalopatia hepática (EH). Além disso, está associada a complicações devido à circulação hiperdinâmica, como síndrome hepatorrenal (SHR) e cardiomiopatia cirrótica.

A insuficiência hepática aguda sobre crônica (ACLF) é uma descompensação aguda, com alta mortalidade, que requer intervenção precoce.

Abordaremos, a seguir, as complicações da hipertensão portal e a abordagem para ACLF.

Manejo das complicações relacionadas à cirrose hepática

Hemorragia digestiva alta varicosa

As varizes esofagogástricas são decorrentes à resistência e ao aumento do fluxo sanguíneo portal e dessa forma são marcadores de hipertensão portal clinicamente significativa (HPCS).

A HDAv é associada a alta mortalidade (10-20% em 6 semanas).  Os principais fatores de risco são varizes > 5 mm, gradiente venoso porto-hepático alto (GVPH), varizes com sinais de cor vermelha, consumo ativo de álcool e presença de sepse. Os principais fatores de risco para ressangramento precoce (em 24 horas) são GVPH > 20 mmHg, varizes de grosso calibre, idade ≥ 60 anos, insuficiência renal e sangramento inicial grave (hemoglobina admissão < 8 g/dL).

a) Tratamento agudo da HDAv

  • Ressuscitação hemodinâmica
  • Expansão volêmica cautelosa;
  • Transfusão restritiva, com alvo de hemoglobina entre 7 e 9 g/dL
  • Não corrigir fatores de coagulação e plaquetas de forma rotineira
  • Antibioticoprofilaxia
  • Cefalosporinas de terceira geração (ceftriaxona 1 g IV a cada 24 horas por 7 dias)
  • Vasoconstrictores esplâncnicos
  • Terlipressina, somatostatina ou octreotide durante 2 a 5 dias.
  • Endoscopia digestiva alta
  • Deve ser realizada dentro de 12 horas, após a ressuscitação hemodinâmica
  • Uso de agentes procinéticos, como eritromicina endovenosa antes da endoscopia auxiliam na visualização
  • Em caso de encefalopatia grave, choque séptico e hemorragia volumosa deve-se proceder com intubação orotraqueal antes do exame
  • Varizes esofágicas e varizes esofagogástricas GOV1 devem ser submetidas a ligadura elástica endoscópica
  • Varizes gástricas isoladas (IGV) e GOV2 devem ser tratadas com injeção endoscópica de cianoacrilato
  • Balão de Sengastaken-Blakemore
  • Útil em caso de sangramento grave refratário, como ponte para terapia mais definitiva, como o shunt intra-hepático portossistêmico via transjugular (TIPS)
  • TIPS
  • Pode ser utilizado de maneira precoce/ preventiva ou como resgate.
  • Método de imagem (Ultrassom Doppler/ Tomografia computadorizada/ Ressonância Magnética)
  • Após estabilização e melhora clínica, o paciente deve ser submetido a um exame de imagem, de preferência utilizando contraste trifásico, para descartar causas agudas de HP como trombose de veia porta e carcinoma hepatocelular

b) Profilaxia primária de HDAv

  • 1ª linha – Betabloqueadores não seletivos (BBNS)
  • Redução da pressão portal
  • Efeitos pleiotrópicos, como prevenção da translocação bacteriana, propriedades antioxidantes, evitar novas descompensações não hemorrágicas, evitar progressão da gastropatia hipertensiva portal, melhora de sobrevida na ACLF.
  • 2ª linha: Ligadura elástica para pacientes intolerantes ou com contraindicação aos BBNS.

c) Profilaxia secundária

  • BBNS + tratamento endoscópico (ligadura elástica)
  • TIPS deve ser considerado em pacientes de alto risco

Ascite

A ascite é a complicação mais comum da cirrose. Todo paciente com ascite, deve ser submetido a paracentese diagnóstica. Um gradiente albumina soro ascite (GASA) ≥ 1,1 g/dL está associado a hipertensão portal.

A hipertensão portal aumenta a liberação de substâncias vasodilatoras, cursando com vasodilatação periférica e esplâncnica. Com isso, ocorre uma hipovolemia relativa, levando a uma hipoperfusão do sistema renal, ativando o sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e do sistema nervoso simpático (SNS), cursando com retenção de sódio e água. Dessa forma, há um aumento significativo na volemia. A ascite se desenvolve devido ao aumento da pressão hidrostática nos sinusoides hepáticos, somando-se a baixa pressão oncótica (hipoalbuminemia) e o aumento da permeabilidade vascular.

a) Manejo da ascite

Restrição de sódio (< 2 g/dia)

Uso criterioso de diuréticos: A combinação de duas classes de diuréticos (antagonistas de aldosterona e diuréticos de alça) é mais bem tolerada e mais eficaz do que o tratamento sequencial (isto é, primeiro, antagonistas de aldosterona seguidos por diuréticos de alça)

Estudos demonstram que terapia parenteral com albumina e o aumento da ingestão oral de proteínas ajudam na mobilização da ascite.

b) Ascite Refratária/Resistente:

  • Ascite resistente a diuréticos: Perda de peso < 0,8 kg em 4 dias em um paciente com cirrose em terapia diurética intensiva (furosemida 160 mg/dia e espironolactona 400 mg/dia) por pelo menos 1 semana, com sódio urinário menor que a ingestão de sódio/dia
  • Ascite intratável: Surgimento de eventos adversos com doses mais altas de diuréticos, incluindo lesão renal e desequilíbrios eletrolíticos.
  • Antes de rotular um paciente como refratário à terapia, deve-se excluir causas para exacerbação da ascite, como: carcinoma hepatocelular, trombose da veia porta e peritonite.
  • Em países endêmicos para tuberculose, deve-se atentar a sinais sugestivos de peritonite tuberculosa, como proteína total do líquido ascítico maior que 2 g/dL. Nesses casos, é importante solicitar ADA no líquido ascítico.
  • A paracentese de alívio é a terapia recomendada para ascite refratária, devendo ser combinada com infusão de albumina (8 g/L de ascite removida), quando removido 5 ou mais litros de líquido ascítico, a fim de reduzir o risco de disfunção circulatória induzida por paracentese.
  • A administração de albumina a longo prazo em pacientes com ascite é objeto de estudo, demonstrando melhora da sobrevida, redução da hospitalização e de infecções.
  • TIPS é uma terapia recomendada como ponte pra transplante hepático em pacientes com ascite refratária. A seleção de pacientes para TIPS deve ser feita após uma avaliação cardíaca adequada.
  • ALFA-PUMP é um sistema automatizado de bomba de ascite de baixo fluxo que transfere a ascite da cavidade peritoneal para a bexiga urinária. Todavia, não está amplamente disponível, além de apresentar eventos adversos, como surgimento de infecção

Disfunção renal: lesão renal aguda e síndrome hepatorrenal

Lesão renal aguda (LRA) na cirrose hepática é definido por um aumento na creatinina sérica em ≥ 0,3 mg/dL dentro de 48 horas ou um aumento de > 50% do valor basal com ou sem diminuição do débito urinário < 0,5 ml/kg por > 6 horas.

O diagnóstico de síndrome hepatorrenal (SHR) se dá na presença de LRA e na ausência de outra causa evidente, como proteinúria, choque, infecções ou uso de nefrotoxinas. A incidência estimada de SHR é de cerca de 18% em 1 ano e 39% em 5 anos e está associada a uma sobrevida mediana inferior de ≤ 3 meses sem transplante.

Feito o diagnóstico de SHR deve-se proceder com vasoconstrictores esplâncnicos (ex: terlipressina, adrenalina ou octreotide + midodrina) em associação com albumina endovenosa. O tratamento definitivo é o transplante hepático.

Encefalopatia hepática

Trata-se de manifestação neuropsiquiátrica relacionada à doença hepática grave.  Deve ser classifica de acordo com os critérios de West-Haven.

A EH mínima é relatada entre 80% dos pacientes com doença hepática avançada, necessitando de testes especializados (ex: animal naming test).

Pode ser dividida em aguda, episódica (intervalos entre os episódios > 6 meses), recorrente (novos episódios ocorrem dentro de 6 meses) ou persistente. A EH refratária é uma condição incomum, definida como ausência de resposta após correção de fatores precipitantes e tratamento com lactulose e rifaximina por 48 h. Nesses casos, é necessário investigar fatores precipitantes ocultos, como shunt portossistêmico e excluir outras causas de encefalopatia.

O tratamento da encefalopatia hepática envolve os passos a seguir:

  • Identificar e tratar o fator causal (por exemplo, HDA, infecções, distúrbios hidroeletrolíticos, uso de benzodiazepínicos, hipovolemia).
  • Utilizar dissacaridases não absorvíveis (lactulose) como terapia de primeira linha, podendo adicionar polietilenoglicol.
  • Adicionar rifaximina oral quando necessário;
  • Considerara L-ornitina L-aspartato (LOLA) intravenosa como manejo adicional;
  • Dieta fornecendo 35–45 kcal/kg/dia e proteínas 1–1,5 g/kg/dia.

Cardiomiopatia cirrótica

Os pacientes com cirrose e hipertensão portal desenvolvem um estado circulatório hiperdinâmico, culminando em mecanismos compensatórios como ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e o sistema nervoso simpático (SNS), levando à taquicardia, aumento do débito cardíaco e redução da resistência vascular sistêmica e da PAM. Esses mecanismos levam à disfunção cardíaca, conhecida como “cardiomiopatia cirrótica”.

Quando há descompensação do quadro (por exemplo, sobrecarga de volume e pós-TIPSS), o paciente pode apresentar dispneia aos esforços, hipertensão pulmonar, arritmias, derrame pericárdico e formação de trombo cardíaco.

A cardiomiopatia cirrótica é potencialmente reversível com transplante hepático. O manejo da insuficiência cardíaca é semelhante ao de pacientes não cirróticos, incluindo restrição de sal e líquidos, uso de diuréticos e redução da pós-carga. O uso de betabloqueador pode reduzir os intervalos QT prolongados com alguma melhora no desacoplamento eletromecânico, mas com redução no débito cardíaco, o que pode ser prejudicial. A redução direcionada da frequência cardíaca para melhorar o enchimento cardíaco e, assim, melhorar o débito cardíaco com ivabradina pode ser tentada em pacientes com ritmo sinusal.

ACLF

ACLF (Acute-on-chronic liver failure) é um status hiper-inflamatório que ocorre em pacientes com hepatopatia crônica, cursando com disfunções orgânicas hepáticas ou extra-hepáticas, associado a alta mortalidade a curto prazo. Existem duas principais definições para ACLF: uma da sociedade europeia (EASL) e outra da sociedade pacífico-asiática (APASL), sendo divergentes em relação a incidência e mortalidade por ACLF.

O ACLF pode ser desencadeado por eventos precipitantes, como: ingestão ativa de álcool, reativação de hepatite B, infecções bacterianas/sepse e lesão hepática induzida por drogas (DILI). No entanto, em cerca de 40% dos casos não se identifica fator precipitante.

Deve-se avaliar o grau de ACLF através de calculadoras eletrônicas. A definição CLIF- EASL é definida com base na falência orgânica: renal, hepática, coagulação, circulatória ou pulmonar.

O manejo do ACLF envolve os passos a seguir:

  • Reabilitação nutricional: 1,5 a 2,0 g de proteína/kg por dia e 35 a 40 kcal/kg por dia com lanches noturnos;
  • Identificar e tratar o fator causal, quando presente, incluindo rastreio infeccioso ativo: puncionar líquido ascítico, coletar culturas, imagem de tórax e análise de urina.
  • Tratamento de suporte das disfunções orgânicas presentes
  • Considerar transplante hepático, que é o tratamento definitivo para ACLF. Contudo, é importante avaliar indicadores de futilidade, como pacientes com ≥ 4 falências de órgãos, pontuação CLIF-C > 64 nos dias 3–7, pacientes ACLF grau 2/3 com sangramento gastrointestinal ativo, sepse controlada por < 24 horas), altas doses de aminas vasoativas, relação PaO2/FiO2 (P/F) < 150, abuso de drogas ativas; infecções por micro-organismos multirresistentes ou infecções fúngicas invasivas, alto risco cardíaco e comorbidades significativas.

Mensagens práticas

O tratamento adequado das descompensações da cirrose hepática melhora o prognóstico desses pacientes. Conhecer o conceito de ACLF e saber manejá-lo é muito importante, visto que essa condição está associada à alta morbimortalidade.

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Autor

Graduada em Medicina pela Universidade Federal Fluminense ⦁ Residência médica em Clínica Médica pelo Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF) ⦁ Residente em Gastroenterologia no Hospital Universitário Cassiano Antônio de Moraes (UFES) ⦁ Instagram: @dra.fernandaazevedo

Referências bibliográficas:
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  • Jagdish RK, Roy A, Kumar K, Premkumar M, Sharma M, Rao PN, Reddy DN, Kulkarni AV. Pathophysiology and management of liver cirrhosis: from portal hypertension to acute-on-chronic liver failure. Front Med (Lausanne). 2023 Jun 15; 10:1060073. DOI: 10.3389/fmed.2023.1060073.


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