No ambiente de terapia intensiva, comumente nos deparamos com quadros de choque séptico refratário ou dificuldade na desprescrição de drogas vasopressoras. Nesse cenário, devemos nos lembrar da Insuficiência Adrenal Relativa, também denominada Insuficiência de Corticosteroides Relacionada à Doença Crítica (ICRDC), uma condição que acomete aproximadamente um a cada quatro pacientes com sepse.
A resposta imunológica exacerbada a uma infecção é capaz de induzir um processo inflamatório intenso que culmina com disfunções orgânicas ameaçadoras à vida. Nesse cenário de hiperexcitação imunológica, o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal (EHHA) desempenha um papel regulador vital.
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O eixo hipotálamo-hipófise-adrenal
O EHHA se organiza da seguinte forma:
- Núcleo paraventricular hipotalâmico, responsável pela secreção de hormônio liberador de corticotropina (CRH) e arginina-vasopressina (AVP);
- Adeno-hipófise, envolvida na secreção basal e pulsátil do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) a partir do precursor proopiomelanocortina (POMC), sob influência do ciclo circadiano;
- E o córtex das glândulas adrenais, encarregadas da produção do cortisol, que alcança os picos no período da manhã.
Na circulação, o cortisol é predominantemente ligado à globulina ligadora de cortisol (CBG), embora a porção livre, lipofílica, mantenha a capacidade de penetração nas membranas celulares, interagindo com os receptores citoplasmáticos de glicocorticoides (GR), entre os quais os principais são o GRα, ativador; e o GRβ, regulador.
Fisiopatologia da ICRDC
Os principais fatores envolvidos na fisiopatologia da ICRDC são a desregulação do EHHA, alterações do metabolismo do cortisol e resistência tecidual aos glicocorticoides endógenos. O produto final desse processo é uma produção adrenal embotada de corticosteroides, aquém do necessário para contrabalancear a gravidade da doença aguda de base.
Nos primeiros minutos a horas da doença crítica, destaca-se o hipercortisolismo, mediado principalmente pela redução do seu clareamento, mais do que pelo esperado incremento da sua síntese. Entretanto, transcorridas horas ou dias do insulto estressor inicial, o aumento sustentado do cortisol livre desencadeia retroalimentação negativa sobre o hipotálamo e hipófise, culminando com a redução da liberação de CRH e ACTH.
Após algumas semanas, há supressão da produção de corticoide, sobrevindo a hipocortisolemia. De forma simultânea, há uma modificação da dominância de expressão do GR, do GRα para o GRβ, implicando em resistência tecidual ao glicocorticoide endógeno.
Agravantes da insuficiência adrenal relativa
Muito se tem comentado sobre o efeito deletério do etomidato na evolução de pacientes críticos. Trata-se de um agente hipnótico, comumente utilizado na sequência rápida de intubação orotraqueal e com perfil hemodinâmico favorável, quando comparado ao propofol e etomidato.
O seu efeito sedativo se inicia em 15 a 20 segundos, com duração aproximada de 2 a 3 minutos; entretanto, o efeito no córtex adrenal, pela inibição da 11β-hidroxilase, é mais prolongado, podendo suprimir a produção de cortisol por até 72 horas. A evidência atual, todavia, é incapaz de implicá-lo definitivamente a um aumento da mortalidade.
As novas terapias oncológicas, a exemplo dos inibidores imunes checkpoint e da terapia com células CAR-T, associam-se frequentemente à hipofisite, com possibilidade de inibição central da liberação de ACTH, além de insuficiência adrenal primária.
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Manifestações clínicas e diagnóstico
A sintomatologia atribuível à ICRD é inespecífica e contempla desde delirium hipoativo, febre de origem indeterminada até hipotensão refratária a fluidos com demanda de terapia vasopressora. As alterações laboratoriais, mais características da insuficiência adrenal primária, como a hiponatremia, hipercalemia, hipoglicemia e eosinofilia, são incomuns.
Na prática clínica, a abordagem diagnóstica é muito heterogênea nos variados serviços, em parte por conta dos desafios de uma condição que, apesar de ser alvo de literatura profícua nas últimas décadas, ainda é pouco compreendida. A ferramenta propedêutica mais costumeiramente disponível no Brasil é a dosagem do cortisol plasmático total, embora seja possível a utilização do teste de estimulação com cosintropina, que nada mais é do que o ACTH sintético.
A combinação laboratorial mais sugestiva de ICRDC inclui o cortisol plasmático total randômico < 10 µg/dL e um incremento no cortisol total < 9 µg/dL após 60 minutos da administração de 250 µg cosintropina.
Abordagem terapêutica e eventos adversos
A reposição de corticoesteroides na ICRDC tem demonstrado, de forma consistente, a redução da duração do choque, mas os impactos sobre a mortalidade são conflitantes. Na balança entre risco e benefício, os eventos adversos não são negligenciáveis: hiperglicemia, hipernatremia, manifestações neuropsiquiátricos, fraqueza neuromuscular, sangramento gastrointestinal e risco aumentado para superinfecções. Todavia, os protocolos atuais se valem de doses mais baixas e por curtos períodos de corticoides, fato que atenua significativamente a morbidade.
O racional para o emprego do corticosteroide exógeno é a restauração da expressão e função do GRα, resolvendo o substrato inflamatório, com potencial de melhorar os desfechos clínicos em contextos apropriados.
O esquema mais recomendado é com hidrocortisona, na dose de 200 mg/dia, em doses fracionadas (50 mg EV de 6/6h) ou em infusão contínua por pelo menos 7 dias. A suspensão abrupta sequencial, sem o desescalonamento gradual, tem se associado à menor probabilidade de retomada da terapia vasopressora, embora seja prática corriqueira a redução gradual da corticoterapia.
O desfecho bruto de mortalidade, como anteriormente exposto, se presente, não é de grande monta, e as evidências são conflitantes. É interessante elucidar que nos 2 estudos que demonstraram melhora de sobrevida, o de Annane (2002) e APROCCHSS (2018), o grupo intervenção consistiu na combinação entre hidrocortisona e fludrocortisona. Sob o aspecto farmacológico, a dose de 200 mg/dia de hidrocortisona contempla o efeito mineralocorticoide esperado de 50 µg de fludrocortisona.
A campanha “Sobrevivendo à Sepse” de 2021 reforça a indicação de hidrocortisona (200 mg/dia) por 3 a 5 dias na presença de choque séptico refratário definido como hipotensão arterial persistente, com demanda por noradrenalina em doses ≥ 0,25 mcg/kg/min por ao menos 4 horas. Outros desfechos secundários avaliados nos RCTs apontam para a redução do tempo de ventilação mecânica e alta mais precoce da terapia intensiva.
Principais indicações de corticoesteroides na sepse | |
Choque séptico refratário | Hidrocortisona 200 mg/dia por 3 a 5 dias |
PAC grave | Hidrocortisona 200 mg/dia por 4 a 8 dias |
SDRA em VM | Dexametasona 20 mg (D1) seguida por 10 mg/dia por 5 a 10 dias |
Meningite | Dexametasona 0,15 mg/kg a cada 6h por 4 dias |
PAC: Pneumonia adquirida na comunidade; SDRA: Síndrome do desconforto respiratório do adulto; VM: Ventilação mecânica.
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Mensagens práticas
- A insuficiência adrenal relativa tem alta prevalência em doentes críticos, como os acometidos pela sepse.
- A insuficiência de corticosteroides relacionada à doença crítica (ICRDC) desencadeia um embotamento da produção adrenal de corticosteroides, incapaz de contrabalancear a tempestade inflamatória relacionada à sepse.
- A apresentação mais corriqueira da ICRDC é a hipotensão refratária a fluidos, com demanda pela terapia vasopressora.
- As ferramentas diagnósticas mais estudadas são a dosagem do cortisol plasmático total (< 10 µg/dL) e incremento no cortisol total < 9 µg/dL em resposta à administração de 250 µg/dL de cosintropina.
- A reposição de corticosteroides reduz de forma consistente a duração do choque, embora os efeitos sobre a mortalidade, se presentes, são de baixa magnitude.
- O esquema terapêutico com maior respaldo é a hidrocortisona 200 mg/dia por 5 a 7 dias, associada ou não à fludrocortisona.
- A indicação mais robusta da corticoterapia na sepse é no choque séptico refratário.
- Os efeitos colaterais mais comuns da corticoterapia na terapia intensiva são a hiperglicemia, hipernatremia e sintomas neuropsiquiátricos. A fraqueza muscular, sangramento gastrointestinal e superinfecções têm sido menos relevantes com os protocolos atuais, em virtude do emprego de doses mais baixas e regimes de curta duração.
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Autor
Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Juiz de Fora em 2013. Residência em Clínica Médica (2016) e Gastroenterologia (2018) pelo Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (HC-UFMG). Residência em Endoscopia digestiva pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2019). Médico na Unidade de Atenção à Urgência e Emergência do HC-UFMG e gastroenterologista no Hospital Monte Sinai (Juiz de Fora/MG).
- Fowler C, Raoof N, Pastores S. Sepsis and Adrenal Insufficiency. Journal of Intensive Care Medicine, 2023, DOI: 10.1177/08850666231183396.