Faz cem anos este mês que morreu em Lisboa um autodidata português que se tornou jornalista, deputado e depois diplomata, com passagem por Rio de Janeiro, Caracas, Panamá e Tóquio. O seu nome era Fernão Botto Machado. Nunca ouviu falar? Vamos corrigir isso.
Descobri Fernão Botto Machado numa tarde de tédio parlamentar em que decidi buscar nos arquivos da Assembleia da República portuguesa a primeira menção positiva ao anarquismo. Calhou ser a de um deputado republicano, socialista e com simpatias libertárias de que eu nunca tinha ouvido falar.
Nascido na região montanhosa da Serra da Estrela em 1865, Fernão Botto Machado tinha crescido na pobreza e estudado sozinho antes de se tornar solicitador, jornalista e conspirador político. Com a implantação da República Portuguesa, em 1910, foi deputado durante um ano e pouco, até se fartar e abraçar a carreira diplomática, que o levou do Brasil ao Japão.
O mais impressionante foi o que ele conseguiu produzir no seu curto mandato parlamentar. Primeira lei portuguesa das oito horas de trabalho. Primeira lei de segurança social dos trabalhadores portugueses. Primeira lei do bem-estar animal. Apresentou ainda um projeto novo de Constituição republicana para Portugal, e defendeu a liberdade de imprensa e os direitos das mulheres.
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Mesmo assim, Fernão Botto Machado não ficou para a eternidade. Mas lembro-me dele frequentemente ao ver as notícias de hoje —como a cada vez que leio sobre a questão das bets no Brasil.
Ora, em junho de 1911, em Portugal, recém-eleito para o Parlamento republicano, Fernão Botto Machado estava também preocupado com o vício em apostas lotéricas de seus compatriotas. As famílias mais pobres não conseguiam poupar e ganhavam comportamentos obsessivos e de dependência; a perda de dinheiro levava à depressão, alcoolismo e até suicídio; e as políticas sociais, que o nosso voluntarioso deputado defendia, corriam o risco de não ter tração se o dinheiro repassado para os trabalhadores acabasse desperdiçado em jogos de azar.
Por outro lado, Fernão Botto Machado era um libertário e não queria proibir as pessoas de gastarem o seu dinheiro como bem entendessem.
Foi então que pensou numa solução engenhosa, que verteu para um sucinto projeto de lei com dois objetivos principais. Em primeiro lugar, a casa lotérica seria obrigada a criar uma conta-poupança no nome do apostador. Em segundo lugar, metade do dinheiro apostado seria guardado e devolvido ao mesmo após cinco anos, acrescido de juros.
“O pensamento deste decreto resume-se nisto”, sentenciou ele. “Quem não poupa, não joga”. Acrescentando: “o jogador verificará pelos seus próprios olhos […] que as somas que consumiu no jogo lhe desapareceram; enquanto que, pelo contrário, as quantias que paralelamente foi obrigado por lei a depositar para poder jogar, estas não só não perdeu, mas até lhe frutificaram com o vencimento dos juros”.
A proposta foi rejeitada, e que eu saiba até hoje ninguém a aplica. Daria resultados? Não faço ideia. Mas gosto do seu espírito prático e intuito pedagógico. E a cada vez que vejo países preocupados com a epidemia das bets, penso: que pena Fernão Botto Machado ter ficado esquecido…
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